BBC News Brasil

BBC News Brasil

Pulmão
Northwestern Medicine
Antes de receber o transplante, Kuhns passou cem dias na UTI ligado a uma máquina de oxigenação por membrana extracorpórea, chamada de ECMO

Em março deste ano, à medida que a pandemia de Covid-19 , a doença causada pelo novo coronavírus, começava a ganhar força nos Estados Unidos, a americana Mayra Ramirez passou a trabalhar de casa.

Como é portadora de neuromielite óptica, doença inflamatória do sistema nervoso central que afeta a medula espinhal e os nervos ópticos, ela decidiu tomar precauções extras para se proteger.

"Eu nunca mais saí de casa", diz Ramirez, de 28 anos, que atua como paralegal em Chicago e que, apesar da doença autoimune, levava uma vida saudável, viajando, praticando esportes e convivendo com a família e os amigos.

Mas, mesmo com todas as precauções, algumas semanas depois ela começou a apresentar sintomas como fadiga, espasmos musculares, diarreia e perda de olfato e paladar e resolveu procurar um médico. Como sua temperatura era de 37 graus, foi orientada a continuar em casa e monitorar os sintomas.

Em 26 de abril, sua situação se agravou, e ela foi ao setor de emergência do hospital Northwestern Memorial. E esta é a última coisa de que se lembra.

Ramirez passou seis semanas na UTI especializada em Covid-19 no hospital, ligada a um respirador e a uma máquina de oxigenação por membrana extracorpórea, chamada de ECMO, que atua como coração e pulmões artificiais, oxigenando e circulando o sangue, em casos em que os órgãos do paciente não são capazes de desempenhar essas funções.

O tratamento de Ramirez mobilizou centenas de médicos e enfermeiros especializados. Depois de várias semanas, os médicos chegaram à conclusão de que sua única chance de sobrevivência estava em um transplante duplo de pulmões.

"O vírus destruiu completamente seus pulmões", diz o médico Ankit Bharat, chefe de cirurgia torácica e diretor cirúrgico do programa de transplantes de pulmões da rede Northwestern Medicine, da qual o hospital faz parte.

"Quando seu organismo se livrou do vírus , ficou óbvio que os danos aos pulmões não seriam revertidos, e ela precisaria de um transplante", completa a médica Beth Malsin, parte da equipe que tratou de Ramirez.

Assim, em 5 de junho, Ramirez se transformou na primeira sobrevivente de covid-19 a receber um transplante duplo de pulmões nos Estados Unidos, em uma cirurgia de 10 horas comandada por Bharat.

'A covid-19 não é uma farsa'

Exatamente um mês depois da cirurgia de Ramirez, a equipe do Northwestern Memorial realizou outro transplante do tipo, o segundo de que se tem notícia no país. O paciente, Brian Kuhns, de 62 anos, estava havia cem dias ligado à ECMO.

Na quinta-feira (30/7), ainda se recuperando e acompanhados de familiares, Ramirez e Kuhns contaram sua história em uma entrevista coletiva realizada em Chicago.

"Eu não lembro de nada durante as seis semanas que passei na UTI ", diz Ramirez. "Quando finalmente acordei, era metade de junho e eu não fazia ideia de que estava em uma cama de hospital."

Ela conta que tinha dificuldades de mexer os dedos dos pés e sentia o impacto físico e mental da doença. Somente dias depois ficou sabendo que havia recebido um transplante duplo de pulmões.

Assim como Ramirez, Kuhns, que é proprietário de uma oficina mecânica em Schaumburg, no Estado de Illinois, levava uma vida saudável até ser infectado com o coronavírus. Mas, ao contrário de Ramirez, ele achava que a covid-19 era uma farsa.

"Eu continuei a levar a vida normalmente, não usava máscara ou tomava qualquer precaução. Achei que era como qualquer outra gripe", lembra Kuhns, ainda com a voz fraca.

Em março, porém, ele começou a sentir sintomas como dores de cabeça e de estômago e um pouco de febre. No dia 18 daquele mês, após começar a apresentar tosse, foi ao pronto-socorro.

Sua mulher, Nancy, diz que esta foi a última vez que ela e as duas filhas e os netos do casal puderam ver Kuhns em quase quatro meses.

"Ninguém pode prepará-lo para o impacto emocional que a covid-19 tem em uma família", afirma Nancy. "Não poder ver, tocar, abraçar um ente querido enquanto ele está lutando por sua vida em uma UTI é extremamente difícil."

Quando ficou claro que precisaria de um transplante duplo de pulmões, Kuhns foi transferido para o Northwestern Memorial.

"Tudo aconteceu tão rápido. Em um minuto eu estava trabalhando, comandando meu negócio, e, no minuto seguinte, estava preso a uma máquina por cem dias", diz Kuhns. "Eu achei que estava morto, que era o fim."

Nancy afirma que a experiência fez o marido mudar de tom em relação à doença. "A covid-19 não é uma farsa. Quase matou o meu marido."

'Por favor, levem isso a sério'

Tanto Kuhns quanto Ramirez precisaram realizar testes que comprovassem que estavam livres do vírus antes de se submeterem ao transplante. Em ambos os casos, as cirurgias levaram mais tempo do que o normal devido à complexidade e ao grau de deterioração dos pulmões dos pacientes.

"Maya e Brian não estariam vivos hoje sem o transplante duplo de pulmões", diz o médico Ankit Bharat, ressaltando que a equipe de cirurgiões passou semanas se preparando para os procedimentos.

Bharat diz que, durante as cirurgias, os médicos confirmaram que os danos severos e o grau de inflamação nos pulmões de Ramirez e Kuhns já estavam comprometendo outros órgãos, como o coração, aumentando o grau de complexidade das operações.

Segundo Bharat, o sucesso das cirurgias nos dois mostra que esse tipo de transplante pode ser uma opção para salvar a vida de alguns pacientes que sobrevivem à covid-19 mas apresentam danos irreversíveis nos pulmões. A equipe em Chicago vem oferecendo aconselhamento a outros centros de transplante ao redor do mundo.

Mas o médico adverte que esse tipo de transplante não é para todos. Ramirez e Kuhns não apresentavam comorbidades. Ambos ainda estão se recuperando, mas já conseguem respirar por conta própria. Eles vão precisar continuar tomando medicamentos para evitar que seu organismo rejeite os pulmões transplantados.

Ramirez recebeu alta em 8 de julho e continua recebendo terapia física e ocupacional. Ela diz que sua recuperação vem avançando a cada dia, mas ainda sente o impacto da doença e da cirurgia.

"Eu era muito independente. Agora não consigo mais fazer tarefas diárias sem me sentir exausta. Até mesmo caminhar é muito difícil", observa.

Ela diz que quer compartilhar sua história para aumentar conscientização sobre a gravidade da doença.

"As pessoas precisam entender que a covid-19 é real. O que aconteceu comigo pode acontecer com você", afirma Ramirez. "Então, por favor, usem uma máscara e lavem suas mãos. Se não por vocês, façam pelos outros."

Kuhns também pede que as pessoas não desprezem os riscos do coronavírus.

"Se minha história pode ensinar alguma coisa é que a covid-19 não é brincadeira. Por favor, levem isso a sério".

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!