Nova edição da caderneta de gestante recebe críticas por orientações consideradas violentas e ineficazes
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Nova edição da caderneta de gestante recebe críticas por orientações consideradas violentas e ineficazes

Há poucos dias, o Ministério da Saúde anunciou a nova edição da Caderneta da Gestante, uma cartilha utilizada no Sistema Único de Saúde (SUS) com informações sobre o pré-natal, parto e os primeiros meses de vida do bebê. Alguns pontos na nova versão, no entanto, têm recebido críticas que apontam uma chancela de práticas de violência obstétrica, como a episiotomia (corte no períneo, região entre o ânus e a vagina, para ampliar o canal na hora do parto), e de eficácia relativa, no caso da amamentação sendo proposta como método contraceptivo.

Além disso, durante o lançamento do documento, o secretário de Atenção à Saúde Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, defendeu a realização da manobra de Kristeller, prática banida tanto pelo Ministério da Saúde, como pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

— Tem algumas coisas que dependendo da situação e em casos excepcionais podem e devem ser feitas e quem define isso é o médico, não são leigos, militantes, ativistas, como por exemplo (...) episiotomia e manobra de Kristeller — disse na ocasião.

A manobra envolve uma pressão feita pelo profissional de saúde no útero da gestante para forçar a saída do bebê e pode levar à ruptura uterina, fratura de costelas, dano ao esfíncter anal e traumatismo craniano no feto, por isso foi abolida. Para o secretário, no entanto, ela não apresenta esses riscos.

— A gente sabe por toda a literatura médica dos últimos vinte, trinta anos, que essa manobra não tem nenhuma indicação. Essa força externa não ajuda no nascimento e pode causar diversos danos ao bebê e à mãe. Essa manobra foi abolida e não pode estar em nenhum protocolo — ressalta a médica ginecologista e obstetra Marianne Pinotti, cirurgiã do hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

Câmara defende ainda que o termo violência obstétrica deveria deixar de ser utilizado.

— Vamos parar de ficar usando termos que não levam a nada, como violência obstétrica, que só provoca e desagregação, coloca a culpa no profissional único, o que não tem o menor sentido — afirmou o secretário.

Críticas à cartilha

O lançamento do documento motivou uma série de críticas de especialistas, mães e políticos. Segundo o ministério, mais de 3 milhões de cópias do material serão impressas e distribuídas aos serviços da Atenção Primária à Saúde de todo o país para disponibilização às gestantes.

Nesta quarta-feira, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da Saúde, encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que o documento seja analisado e afirmou que o conteúdo “incentiva a violência obstétrica”.

“Dei entrada no TCU um pedido de análise da 6ª Caderneta da Gestante. O texto incentiva o parto cesariana a pedido da grávida, apoia a episiotomia e cita a amamentação como método contraceptivo. É gravíssimo! O Ministério da Saúde está incentivando a violência obstétrica”, escreveu o parlamentar em sua conta no Twitter.

Especialistas que rechaçaram as abordagens promovidas no novo documento apontam métodos com falta de evidência científica, considerados ultrapassados e agressivos e que não levam em consideração realidades diferentes da população brasileira.

— Foram muitas mudanças significativas. As recomendações em relação à episiotomia e às cesarianas sem indicação clínica foram reescritas e banalizadas. A orientação para realização de pesquisa para anemia falciforme foi abolida, desconsiderando essa condição comum na população negra. Todo o novo texto do documento, que tem como função informar as gestantes durante o pré-natal, perdeu sua característica principal que é a fundamentação em evidências científicas com foco nas boas práticas obstétricas — afirma a médica obstetra Ana Fialho, do Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Holanda, um centro de referência do parto humanizado no Rio, e membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras.

Para Bianca Balassiano, consultora internacional de lactação e especialista em saúde materno-infantil, a nova cartilha é um retrocesso em relação à versão anterior e endossa práticas violentas que estão sendo combatidas.

— É um retrocesso absurdo, naturaliza violência obstétrica e recomenda procedimentos que sabemos que estão obsoletos, que não são respaldados nem pela OMS. A naturalização da episiotomia, por exemplo, que não tem nenhuma evidência científica, e a manobra de kristeller, que é super violenta, são pontos que a gente vem lutando contra. É muito importante que essa cartilha seja revista — afirma Bianca.

— A violência obstétrica é uma epidemia no Brasil. Nessa cartilha, há um viés de permissividade que fala sobre justificativas para situações que deviam ser punidas criminalmente — complementa Marianne Pinotti.

Episiotomia e amamentação como contraceptivo

A episiotomia é um dos pontos mais criticados no novo texto. No entanto, evidências científicas têm apontado ausência de benefícios na prática, que muitas vezes é realizada sem autorização da gestante, por isso caracterizada por especialistas como mutilação genital.

De acordo com a nova caderneta, a episiotomia não deve ser realizada de rotina, mas admite a possibilidade “em casos específicos”. Para o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), isso “estimula a prática”, que é contraindicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018.

— É uma intervenção cirúrgica já abolida e considerada uma mutilação genital. Não há mais justificativa científica para a realização desse procedimento, que prejudica a saúde da mulher sem benefício para o parto — complementa Ana Fialho.

Além disso, o texto defende que a amamentação durante os seis primeiros meses de vida do bebê oferece “uma proteção contra uma nova gravidez”, apesar de admitir que “não é plena”. Isso porque, em teoria, durante o aleitamento, a mulher produz o hormônio prolactina, que impede a ovulação. Mas a eficácia não é tão simples assim.

— Tem um índice de falha muito grande. Porque ele tem regras muito rígidas para um bom índice de eficácia, como a não retomada do período menstrual. Só que a primeira ovulação depois da chegada do bebê não é precedida pelo período menstrual, então muitas vezes as mulheres acham que não estão ovulando, mas estão. Por isso, especialmente quando falamos de saúde pública, de uma população heterogênea, o método não é confiável. Então é um retrocesso que isso apareça dentro de um Caderneta da Gestante — explica Bianca.

Outra questão que foi alterada na nova edição é em relação às doulas, profissional que acompanha a gestante durante o período de gravidez, parto e período pós-parto, que deixaram de ser mencionadas no texto.

— A presença das doulas no cenário do parto traz inúmeros benefícios para a gestante e suas famílias já comprovados em múltiplos estudos científicos. Esse acompanhamento também já é garantido por lei em diversos estados e municípios do país. Um retrocesso sem tamanho a ausência do texto que informa sobre a atuação das doulas — ressalta Ana.

Suspensão do material

O Cofen defende que o material seja “recolhido e reelaborado, de acordo com as evidências científicas disponíveis”, atitude também sugerida pelas especialistas.

— Quando você impede que a mulher acesse informações que a defendem contra atuações violentas e prejudiciais à sua saúde, você não somente retira a sua autonomia, você também a expõe a riscos e ameaça a sua integridade — destaca Ana Fialho.

Para Marianne Pinotti, faltam ainda questões fundamentais no documento, como o alerta para as gestantes estarem atentas caso o bebê deixe de se movimentar nas últimas seis semanas da gravidez.

— Em nenhum momento a cartilha fala sobre movimentação fetal. A parada ou diminuição dessa movimentação é a primeira coisa que o bebê faz se não está bem, e a mãe tem de 24 a 48 horas para conseguir um atendimento que evite a perda de bebê — explica a ginecologista.

Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que a nova caderneta faz parte de um processo de reestruturação do modelo de cuidado materno-infantil no SUS e que o documento é “um importante instrumento de acompanhamento da gestação, parto e pós-parto”.

Sobre as críticas, a pasta diz entender que “as práticas realizadas durante o parto devem ser debatidas entre a paciente e o médico obstetra” e que situações de abuso devem ser denunciadas. O ministério não respondeu sobre as recomendações da episiotomia e da amamentação como método contraceptivo abordadas na cartilha.

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