O pré-lançamento do filme da Barbie tem gerado expectativa em muitos fãs, que durante anos acompanharam a trajetória de uma das bonecas mais famosas no mundo. A admiração por ela é tanta que, recentemente, a busca por acessórios e até alimentos rosa tem aumentado, sobretudo com a influência da atriz Margot Robbie, que dá vida a personagem nas telas dos cinemas.
No entanto, a afeição pode tornar-se perigosa quando em excesso, como em casos em que o público deseja, de alguma forma, ter a aparência da Barbie para ganhar fama, prestígio ou conseguir se promover profissionalmente.
“[…]Imagine alguém que quer ser a Barbie para deixar de ser quem é, para ser amada e tratada como, em sua fantasia, a boneca é. Neste caso, estamos falando de uma situação que sugeriria o desejo de realização de uma espécie de delírio de Barbie”, explica o professor de psicanálise e psicanalista Ronaldo Coelho.
Ainda segundo o profissional, “a probabilidade que essa pessoa se sinta falhando miseravelmente ao perceber que as mudanças que realizou não transformaram a sua vida como havia inicialmente sonhado, é exponencialmente maior […]. Diante deste cenário, ao falhar, a pessoa que já tinha alguns problemas e insatisfações consigo mesma, às quais esperava superar dessa forma, investindo dinheiro e muita esperança, pode adoecer”, alerta.
Relação entre admiração e transtorno
Ronaldo Coelho explica que, de acordo com dados da 5ª edição do DSM-5 (Manual Diagnóstico Estatístico dos Transtornos Mentais), o termo transtorno deve ser empregado para aquilo que causa sofrimento significativo para a pessoa e/ou perda ou dano para sua vida e/ou à vida de outras pessoas.
Nesse sentindo, é possível, por exemplo, que alguém consiga viver o desejo de se parecer com outra pessoa sem que isso signifique um grande transtorno para sua vida ou de outras pessoas. Bem como é igualmente possível imaginar que alguém possa ter a fixação em se tornar a outra pessoa como forma de substituição ou anulação da própria identidade, principalmente com o avanço das redes sociais, o que traria ainda outra compreensão.
“Neste extremo, podemos estar diante de alguém que rejeita o próprio corpo por completo, a própria aparência, que submete sua identidade à de outra pessoa. É difícil imaginar uma situação como essa em que não haja sofrimento ou uma repressão completa desse sofrimento de ser quem se é, ganhando a forma de desejo fixo de ser outra pessoa a ponto de se transformar fisicamente nela – inclusive, quando essa ‘outra pessoa’ é uma boneca […]”, diz o psicanalista.
Papel das mídias sociais na distorção de imagem
Para Ronaldo Coelho, nós temos que considerar que os avanços tecnológicos trazidos pelos smartphones e redes sociais têm papel importante em um modo de se constituir psiquicamente que é novo para nós como humanos. “A imagem tem ganhado lugar de destaque e, muitas vezes, o parecer importa mais, a ponto de se sobrepor ou mesmo substituir o ser”, diz o especialista.
O profissional também explica que é necessário considerar tanto a imagem criada através das redes quanto a possibilidade de um transtorno para compreender como a fixação se manifesta em cada caso, pois, em algumas situações, é possível que essa admiração exagerada possa ajudar a tratar algum tipo de sofrimento.
“As situações podem ser tão múltiplas e singulares que é possível imaginar alguém que encontre aí, diante dos likes e holofotes recebidos, um caminho para se constituir subjetivamente de maneira a cuidar de um sofrimento, de ‘curar-se’ de um suposto transtorno, indo contrariamente a um eventual prognóstico ruim.”
Contudo, para o especialista, é igualmente verdade a probabilidade dessa expectativa ser frustrada e a pessoa adoecer ou apresentar um nível de sofrimento significativo mesmo antes de iniciar os procedimentos de transformação.
Importância do tratamento psicanalítico
Conforme explica o psicanalista, o tratamento psicanalítico se destina a cuidar do sofrimento e não do desejo de se parecer outra pessoa, como se a pessoa tivesse que mudar sua escolha. “A análise incidirá no cuidado com as expectativas criadas. No caso em que a tentativa de ‘se parecer’ ou de ‘se tornar’ visava ‘curar’ algum tipo de ferida, a análise nos levará a essas feridas para que, uma vez cuidadas de maneira que efetivamente esse sofrimento possa encontrar acolhimento e compreensão, cicatrizem”, conta Ronaldo Coelho.
O profissional ainda diz que a análise age no processo de reconstrução de uma pessoa. Assim como acontece com as feridas do corpo quando recebem o tratamento adequado, as mesmas feridas psíquicas também se fecham de modo que a dor não mais impossibilite o paciente de seguir o caminho que imprimiu para si.
“Muitas vezes, como nos mostra a experiência clínica, os caminhos e seus sentidos são tecidos concomitantemente ao processo de cicatrização das feridas no processo de análise”, finaliza o professor de psicanálise.
Por Mayara Barreto Cinel