Relatos de uma noite mal dormida entre os jovens estão ligados à quebra de rotina, aumento de dispositivos eletrônicos e piora da saúde mental, explicam especialistas.
FreePik
Relatos de uma noite mal dormida entre os jovens estão ligados à quebra de rotina, aumento de dispositivos eletrônicos e piora da saúde mental, explicam especialistas.

Os impactos da pandemia na vida dos jovens, com o interrompimento das aulas presenciais, a necessidade de permanecer em isolamento e a série de incertezas durante um período que já é fortemente caracterizado por mudanças, ainda estão sendo desvendados pela ciência. Porém, um deles cada vez mais claro é a forma como a crise sanitária impactou a hora de dormir  – com uma série de pesquisas apontando para uma piora na qualidade do sono. O cenário envolve uma preocupação em dobro, já que se trata de uma fase da vida em que o cérebro ainda está em formação.

Os dados mostram que, no geral, os brasileiros já têm problemas relacionados ao sono. Segundo a última pesquisa da Associação Brasileira do Sono (ABS), as dificuldades para atingir uma noite de qualidade afetam 65% da população – informação corroborada por um estudo publicado recentemente na revista científica Sleep Epidemiology, que ressalta ainda a maior propensão dos jovens a um sono ruim.

"Sabemos que é uma faixa etária mais vulnerável à privação de  sono e às adversidades no geral, porque é uma etapa de enorme plasticidade cerebral, de modificação das redes neuronais. Não é só de modificação do pensamento, do comportamento, mas de estrutura física mesmo do cérebro", explica o especialista em sono e doutor em neurociências Fernando Louzada, coordenador do Laboratório de Cronobiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

E esse cenário piorou com a pandemia. Em comparação com o ano anterior, um levantamento da ABS de 2020 mostrou que a média de horas de sono por noite caiu de 7,12 horas – o mínimo recomendado pela Fundação Nacional do Sono dos Estados Unidos – para 6,23 horas. Entre os jovens, que precisam de mais tempo por noite, um estudo conduzido no primeiro ano da pandemia pela Fiocruz mostrou esse impacto da Covid-19.

Cerca de 36% dos adolescentes de 12 a 17 anos relataram uma piora na qualidade do sono com a chegada da pandemia, com 24% tendo desenvolvido problemas relacionados a hora de dormir e 12% que já tinham dificuldades relatando uma piora. E a situação não é exclusiva do primeiro ano da Covid-19: um estudo publicado em 2022 na revista científica Sleep Science por pesquisadoras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com adolescentes de 13 a 18 anos, mostrou que um índice maior, de 58,2%, ainda relatava uma piora na qualidade do sono.

"A pandemia colocou um grande ponto de interrogação sobre o futuro . Os jovens que estavam em momentos cruciais, como entrada numa universidade ou no mercado de trabalho, tiveram que lidar com a frustração de não dar o 'próximo passo'", avalia a neurologista Christianne Martins Bahia, responsável pelo Ambulatório de Distúrbios do Sono do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Hupe - Uerj).

Como é o impacto nos jovens

A forma como a pandemia provocou mudanças no sono dos jovens pode ser resumida em três principais áreas, segundo os especialistas. A primeira, e a principal, é a perda da ritmicidade com o isolamento social, algo decorrente da súbita mudança de rotina. A diretora de Ensino e Pesquisa do Instituto do Sono Monica Andersen, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que, já que as pessoas não precisavam sair de casa tão cedo, elas postergaram a hora de dormir, e alteraram repentinamente o ciclo do sono.

"Isso é muito ruim porque o fator mais importante para nossa qualidade do sono é a ritmicidade. Na hora que você perde isso, os processos fisiológicos do corpo passam a funcionar de forma diferente. Por exemplo, no entardecer, nosso corpo começa a liberar a melatonina, estimulada pela escuridão, que sinaliza para o corpo que é hora de dormir. Como as pessoas ficaram mais horas acordadas de madrugada, na televisão, na internet, estimulando o cérebro, houve uma alteração na produção desse hormônio", afirma a professora da Unifesp.

Esse impacto é mais forte entre os jovens porque eles já são mais propensos a sofrer algo chamado de atraso de fase do sono, explica a neurologista e neuropediatra Rosana Alves, membro da Associação Brasileira do Sono (ABS).

"Esse atraso é uma tendência natural a dormir e a acordar mais tarde, postergando o ciclo circadiano. Isso é relativamente comum nessa faixa etária, mas com a chegada da pandemia, especialmente no início, esse atraso que já costuma acontecer piorou", diz a médica.

Um estudo brasileiro, publicado no Journal of Clinical Sleep Medicine, mostra como isso de fato alterou os hábitos de sono. A partir de um questionário, realizado antes e depois da pandemia, foi observado que os alunos de ensino médio passaram a dormir uma hora e meia mais tarde e acordar duas horas depois do habitual.

Além dessa perda de ritmicidade, outro fator para as alterações e piora do sono com a Covid-19 foi a maior adesão aos dispositivos eletrônicos, que se tornaram parte ainda mais importante da rotina com o isolamento social. Segundo a pesquisa da Fiocruz, 70% dos entrevistados passaram a ficar mais de quatro horas por dia em frente ao computador, tablet ou celular.

"São pessoas que estão numa fase de construção de redes de socialização, o que não pôde acontecer de forma física, apenas digital. Então, eles acabaram se tornando mais dependentes ainda desses dispositivos e, consequentemente, diminuindo a quantidade de horas de sono. E essa privação potencializa o que já era ruim, porque os dispositivos provocam no cérebro uma avalanche de substâncias que estimulam para que ele permaneça acordado", afirma Monica, do Instituto do Sono.

Para Louzada, da UFPR, como o jovem já tem a dificuldade do atraso do sono, a tecnologia encontra um ambiente favorável para exacerbar essa tendência.

"Os dispositivos atuam de duas maneiras. Uma com a própria luz que eles emitem, que sinaliza para o nosso cérebro que não anoiteceu, e a outra pelo conteúdo. Se é algo estimulante, como um jogo, um filme, uma interação social, isso leva à produção de substâncias que empurram o sono para mais tarde", explica o neurocientista.

Um estudo da Universidade de Glasgow, no Reino Unido, publicado na revista científica BMJ Open, comprovou isso a partir da avaliação de 12 mil jovens de 13 a 15 anos. Os pesquisadores concluíram que o uso por mais de três por dia de redes sociais, por exemplo, levou a uma tendência de adormecer após as 23h e de acordar diversas vezes durante a noite.

Saúde mental é chave

Toda essa realidade de quebra da rotina e maior uso de aparelhos eletrônicos encontra um cenário de piora da saúde mental com a pandemia, um quadro cada vez mais claro para os especialistas. Eles destacam que problemas como ansiedade e depressão cresceram na faixa etária e atuam tanto piorando o sono como sendo intensificados pela ausência do descanso adequado.

"A insônia pode ser um sintoma da ansiedade e da depressão. Geralmente no caso da ansiedade, o jovem tem mais dificuldade para pegar no sono, mas depois dorme. Já aqueles com depressão, podem até adormecer de forma rápida, mas costumam acordar de madrugada. Só que esse sono de tempo reduzido ou interrompido também predispõe os problemas de saúde mental. Então uma coisa piora a outra, o jovem tem uma insônia, isso piora os sintomas de saúde mental que pioram o sono", explica Rosana, da ABN.

De acordo com a mesma pesquisa da Fiocruz que apontou a piora no sono, cerca de metade dos adolescentes relataram sentir-se mais nervosos, ansiosos e de mau humor com a chegada da pandemia. Já uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), publicada na European Child and Adolescent Psychiatry, mostrou que 36% dos jovens brasileiros apresentaram sintomas de depressão e ansiedade após o início da Covid-19, índice que permaneceu no patamar elevado até o momento atual da crise sanitária.

"Hoje fala-se tanto em como a saúde mental foi afetada pela pandemia. E tem fatores, como a exposição às perdas, que não temos como evitar, mas dá para trabalharmos fatores que são protetores, como alimentação, atividade física e, não menos importante, o sono", orienta Louzada.

Riscos de um sono ruim

Uma rotina de noites mal dormidas causa uma série de efeitos negativos ao organismo. Um deles é justamente o para a saúde mental. Uma análise de 16 trabalhos sobre o tema, realizada por pesquisadores canadenses e publicada na revista Jama Network Open, avaliou as evidências em estudos com mais de 20 mil participantes de 5 a 24 anos. Os responsáveis constataram a ligação entre o sono ruim e uma maior incidência de depressão, e alertam que “a alta prevalência de distúrbios do sono” implica em um grande número de crianças e jovens vulneráveis mentalmente.

Christianne, do ambulatório do sono do Hupe, explica que essa faixa etária é mais suscetível aos problemas da mente relacionados ao sono devido a um processo de amadurecimento cerebral chamado de mielinização, que apenas se completa aos 25 anos.

Louzada destaca ainda que há outros efeitos da redução ou interrupção do sono nessa idade que podem ser observados em poucos dias ou semanas. São eles um impacto negativo na consolidação da aprendizagem, na memória, na capacidade de atenção e na regulação emocional, tornando-os mais impulsivos, irritados e mais propensos a manifestar alterações de humor.

"Nessa época, eles são mais frágeis mesmo, em termos de equilíbrio, de regulação emocional. Então nessa faixa etária a gente pode pensar em um efeito protetor do sono ainda maior porque o cérebro não está plenamente maduro ainda", complementa Louzada.

Outros estudos já mostraram que o sono inadequado pode levar também a um aumento na gordura abdominal e visceral, que é ligada ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Um trabalho da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, publicado no American Journal of Human Biology, estimou que o risco para obesidade, por exemplo, aumenta em 80% a cada hora reduzida no sono de jovens entre 11 e 16 anos.

"O sono insuficiente, de 4, 5 horas por dia, ou muito interrompido, pode levar a alterações cardiovasculares a longo prazo, hipertensão arterial, e predisposição a doenças metabólicas, como obesidade e diabetes, mesmo no paciente jovem. Então, quando você afeta o sono, acaba tendo prejuízos no corpo todo, até no próprio sistema imune, afetando a capacidade de combater infecções", explica a neuropediatra Rosana Alves.

Quantidade não quer dizer qualidade

Entre os impactos do sono, um ponto importante é que os relatos de uma piora entre os adolescentes podem não estar relacionados necessariamente apenas à duração. Isso porque especialistas explicam que um sono considerado ruim não é apenas aquele mais curto, como também aquele que não atinge o resultado “reparador”.

"Sono bom é aquele que quando acordamos nos sentimos revigorados. Alguns indicativos de que o sono não está adequado são roncos, pausas respiratórias, despertares no meio da noite, movimentos bruscos, falar ou andar enquanto está dormindo, dificuldade de iniciar ou manter o sono, acordar antes do desejado e não conseguir voltar a dormir e o excesso de sono durante o dia", explica Christianne, do ambulatório do sono do Hupe.

Nesse contexto, embora os estudos mostrem que os jovens relataram uma piora do sono com a pandemia, uma série de trabalhos, como um conduzido por Louzada, em Curitiba, mostram que o isolamento proporcionou uma duração maior da quantidade de horas dormidas devido à flexibilidade nos horários escolares.

Com base em um questionário com cerca de 1.500 adolescentes, realizado antes e depois da pandemia, o pesquisador observou que o número de jovens que dormiam ao menos oito horas por noite, que antes era cerca de 20% do total, passou para mais da metade da amostra.

"Isso expressa a inadequação dos horários escolares matutinos. Na hora que você dá oportunidade para o adolescente dormir mais porque não precisa estar na sala de aula às 7h da manhã, eles dormem mais, o que é benéfico não só para a cognição como para a saúde no geral, especialmente a mental", defende Louzada.

O que fazer para reverter o cenário

Há algumas dicas que podem ajudar a recuperar uma rotina saudável de sono e prevenir as consequências negativas de uma noite ruim. A primeira, sugerem os especialistas, é recuperar o ritmo que foi perdido com a pandemia. Assim como a quebra da regularidade no sono traz danos, estabelecer horários para dormir e acordar ajuda a acostumar o cérebro a entender quando ele deve “desligar”.

"Isso quer dizer dormir e acordar no mesmo horário com uma certa regularidade. Logicamente, em alguns dias, como final de semana, vamos extrapolar um pouquinho. Mas não devemos sair, por exemplo, de um ritmo de dormir às 23h de segunda a quinta e no final de semana dormir às 4h", orienta Monica, do Instituto do Sono.

Para ajudar a recuperar o ritmo, existem alguns hábitos que mostram ao nosso corpo que é hora de dormir. Um deles é justamente em relação aos dispositivos eletrônicos, que devem ser evitados pelo menos duas horas antes de ir para a cama. Isso porque a luz atua dizendo ao cérebro para liberar os hormônios relacionados às fases do dia: o cortisol pela manhã e a melatonina à noite.

Por isso, além de evitar os aparelhos que emitem luz à noite, ser exposto ao sol pelo dia, por meio de caminhadas, ou apenas colocando o computador mais próximo à janela, já são medidas eficazes para ajudar a delimitar o ciclo do sono.

Há ainda práticas que desregulam essa produção de hormônios e devem ser deixadas de lado, como a ingestão de cafeína, refrigerantes e alimentos gordurosos após as 20h e a realização de atividade física ao menos três horas antes de dormir. Evitar o álcool também é uma boa ideia já que, embora ele provoque uma sensação de relaxamento no início, o efeito passa a ser estimulante no decorrer das horas.

Entre no  canal do Último Segundo no Telegram e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo.  Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!