Enfermeiro maneja frascos de vacina contra Covid-19
Reprodução: BBC News Brasil
Enfermeiro maneja frascos de vacina contra Covid-19

No Estado do Rio de Janeiro, onde mais de 74 mil pessoas já morreram de Covid-19, sobram vacinas e faltam braços. Só na capital, 3,3 milhões de pessoas estão com o esquema de proteção incompleto e cem mil doses de AstraZeneca têm prazo de validade que expira na próxima terça-feira. A prefeitura corre contra o tempo para imunizar os atrasados e esvaziar seu estoque para evitar mais desperdício. A Secretaria estadual de Saúde informou que, desde o início da pandemia, 151 mil doses fora do prazo foram parar no lixo no estado.

As perdas somam até agora 0,3% das 44 milhões de doses recebidas pelos 92 municípios fluminenses. Na cidade do Rio, que chegou a vacinar 123 mil pessoas num único sábado num dos picos da pandemia em 2021, são feitas hoje cerca de 20 mil aplicações por dia. Quando alguém com mais de 11 anos chega ao posto de saúde pode optar por qualquer imunizante aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária: CoronaVac (que hoje só está disponível para a faixa de 3 a 11 anos), Pfizer, Janssen e AstraZeneca.

Enquanto os pacientes não aparecem, a Secretaria municipal de Saúde adota estratégias para ampliar o alcance da segunda aplicação de reforço. Na semana passada, a prefeitura liberou as doses para a população a partir de 30 anos, desde que respeitado o intervalo de quatro meses a partir da injeção anterior.

Mas, se sobra vacina de um lado, do outro falta. Nos últimos dias, alguns postos ficaram sem doses da Pfizer pediátrica, indicada para a faixa de 5 a 11 anos. A situação começou a ser normalizada ontem, após a rede municipal de saúde receber 55.180 unidades do Ministério da Saúde. Sem a Pfizer, a única vacina disponibilizada para crianças de 3 a 11 anos era a CoronaVac. Por isso, a SMS deixou de oferecer a vacina do Butantã para adultos e adolescentes. Das cem mil doses que havia em estoque, restam cerca de 70 mil.

Descarte seguro

Sobre as doses de AstraZeneca que podem perder a validade, a SMS divulgou uma nota ressaltando que equipes da pasta têm feito busca ativa por pessoas que não se imunizaram. E destacou que as vacinas de todos os fabricantes disponíveis no Brasil são seguras e eficientes na proteção contra os casos mais graves de Covid-19. “Caso, após o vencimento, sobrem doses (da AstraZenca), a secretaria tem protocolos para a coleta dos insumos e o devido descarte, seguindo as normas da Vigilância Sanitária e do Ministério da Saúde, evitando qualquer possibilidade de uso equivocado fora da validade”, diz um trecho do comunicado.

Os imunizantes que estão por vencer foram fabricados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em novembro de 2021. Inicialmente, os insumos só teriam validade por seis meses. No entanto, em abril deste ano, a diretoria colegiada da Anvisa autorizou a ampliação por mais três meses do prazo de validade previsto nos rótulos. Ou seja, até o dia 2 de agosto.

Mestre em Saúde Pública pela Fiocruz e professora da UFRJ, a médica Lígia Bahia avalia que o risco de se perderem vacinas devido ao prazo de validade deve estar se repetindo em outras partes do país. Ela diz que isso é uma consequência da falta de sinergia entre autoridades federais, estaduais e municipais para agilizar a distribuição e a aplicação dos imunizantes. E critica, ainda, o poder público por ter permitido ao usuário escolher o fabricante da vacina que vai receber.

"O Ministério da Saúde demorou a entregar vacinas, e a distribuição apresentou problemas. Era perfeitamente possível evitar que isso acontecesse: o prazo de validade dos imunizantes era conhecido. A prioridade deveria ser aplicar as vacinas, evitando desperdícios", disse Lígia.

Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, essa perda é reflexo de uma série de fatores, inclusive da falta de campanhas institucionais de alcance nacional por parte do Ministério da Saúde que incentivem a vacinação.

"Pelo menos 85% da população brasileira tomou duas doses. Essa boa cobertura reduziu a quantidade de casos graves e mortes por Covid-19, trazendo uma falsa sensação de segurança. A situação é ruim: não sabemos como o vírus pode se comportar ao longo do tempo (com mutações). Essas doses que agora podem ser jogadas fora, além de representar desperdício de recursos públicos, podem fazer falta no futuro."

Para o especialista, a principal preocupação é com a vacinação incompleta dos idosos. De acordo com dados do Painel Covid-19 da prefeitura do Rio, por exemplo, 66 mil moradores da cidade com 80 anos ou mais ainda não tomaram o segundo reforço.

"Os idosos estão mais sujeitos a contrair a doença de forma mais grave por serem mais propensos a ter problemas de saúde", frisou o ex-ministro.

‘Fake news’

Entre os atrasados na capital, o maior contingente é o daqueles na faixa dos 18 aos 29 anos que não receberam o primeiro reforço. São mais de 475 mil pessoas, que devem ter esquecido o impacto causado pela pandemia na economia e na vida de milhares de famílias. Publicado este ano, na revista internacional “Journal of the Royal Society Interface”, um estudo do Laboratório Nacional de Pesquisa Científica e da Faculdade de Medicina da UFRJ demonstrou que, no Estado do Rio, a demora de um mês, por parte do governo federal, em começar a distribuir vacinas custou a vida de cerca de 31 mil pessoas no ano passado.

O médico e virologista Amílcar Tanuri observa que a sobra de doses demonstra que é muito difícil a adesão da população para receber doses de reforço. Ele defende que sejam feitos estudos aprofundados para definir qual o perfil da população que precisará de mais doses ao longo do tempo:

"A vacina teve um papel importante na contenção de casos a partir de 2021. Muita gente deixou de tomar as doses de reforço por causa de desinformação e fake news. Minha avaliação é que são necessários estudos científicos, como análises sorológicas, para determinar as populações que, de fato, seriam mais beneficiadas por doses extras", disse Tanuri.

O subsecretário estadual de Vigilância e Atuação Primária em Saúde, Mário Sérgio Ribeiro, observa que, em qualquer campanha de vacinação, podem sobrar doses ou haver perdas de imunizantes sem que isso configure desperdício:

"A queda da procura por doses não se limita à vacina contra Covid-19. Mesmo com busca ativa por pessoas não vacinadas, isso se repete com outros imunizantes. No passado, a cobertura vacinal contra a pólio ultrapassava os 95%. Agora está mais baixo. O percentual de imunizados contra sarampo é outro exemplo", disse Mário Sérgio.

Segundo ele, as prefeituras têm se mobilizado para evitar perdas, com a troca de doses entre si.

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