Caso de órgãos infectados por HIV reflete "privatização descontrolada", diz especialista

Alessandra Nilo, Veriano Terto Jr. e Dr. Fábio Mesquita analisaram as falhas que resultaram nas infecções

Ao todo, seis pacientes receberam órgãos infectados por HIV no Rio de Janeiro
Foto: Reprodução / TV Globo
Ao todo, seis pacientes receberam órgãos infectados por HIV no Rio de Janeiro

A Agência Aids  e o Portal IG realizaram uma live nesta quinta-feira (17) sobre o caso do transplante de órgãos infectados por HIV em seis pacientes no Rio de Janeiro. Segundo Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), o escândalo é o resultado da " privatização descontrolada" do setor da Saúde.

"Desde o ano passado que nós, da sociedade civil, estamos chamando a atenção sobre essas tendências a uma privatização cega, descontrolada, sobre a questão do sangue no Brasil", disse Terto Jr.

Ele citou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022, conhecida como PEC do Plasma e aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara em 2023. O projeto busca flexibilizar a Lei Henfil, que regula os processos envolvidos na doação de sangue, e autorizar a venda de plasma humano no país.

"A partir dos sucessos que tivemos com essa lei, a questão do sangue parece que desapareceu das agendas do governo e da própria sociedade", diz Verno. "Mas, essas parcerias entre o setor público e o setor privado continuaram acontecendo, de formas muitas vezes obscuras, sem um controle social por parte dos órgãos competentes, e um dos resultados disso é esse retrocesso que estamos assistindo nos dias de hoje com esse escândalo. Uma falha imensa, produto da ganância, da privatização descontrolada, com indícios de corrupção", afirma.

"Imaginava que algo assim em breve iria acontecer, e na verdade eu acho que provavelmente deve estar acontecendo em outros lugares, com a diferença de que nós não sabemos, com a diferença de que nós não temos um sistema de controle dessas parcerias público-privadas estabelecidas pelo Estado brasileiro", diz Alessandra Nilo, jornalista e co-fundadora da ONG Gestos.

"O problema não é fazer parceria público-privada. O problema é você fazer essas parcerias em áreas essenciais para o governo, como saúde, comunicação, energia", defende. "Toda essa falácia de que o que Estado faz é muito ruim e o que o setor privado faz é muito bom tem, historicamente, nos sido empurrado por essas pessoas que assumem as gestões públicas. (...) Essas parcerias público-privadas não são transparentes e não têm a devida fiscalização", diz.

"Nós estamos falando de um caso da saúde que tem uma repercussão para a gente pensar o Brasil como um todo e começar a fazer essa discussão que é: o que é estabelecer uma parceria público-privada? Qual é o nível de opacidade dessas parcerias que são estabelecidas, que é muito alto, e nós não conseguimos fazer controle social sobre elas?", questiona Alessandra.

A jornalista também citou os casos de testes falso-positivos para HIV. Ela citou o caso de mulheres que receberam esses laudos e tomaram, sem precisar, doses fortes de antirretrovirais. "Como estamos tratando essas mulheres que vivem com HIV, que querem ter seus bebês e que são tratadas de uma forma tão violenta, apartadas de seus filhos, não podem amamentar, não têm informação. Essa falha de pré-natal é algo que resultou também dessa situação exemplar que estamos vivenciando", afirma.

"É um processo de privatização, de parceria público-privada, mas sem controle social, sem controle até das áreas técnicas", afirma o Dr. Fábio Medina. Para o médico, as autoridades justificam a privatização com os limites de investimentos impostos pela legislação, entretanto, o papel da fiscalização ainda é dos órgãos públicos. "Pode até ser que a legislação os obrigue a fazer as parcerias, mas não pode se omitir da fiscalização. É o papel do secretário municipal de saúde, do secretário estadual de saúde e da ministra da saúde", diz.

Ele também criticou que o ministério só convocou os pacientes infectados para tratamento após o caso ser noticiado pela imprensa. "Nós sabemos hoje que, quanto antes começa o tratamento do HIV, melhor a perspectiva para a pessoa, de não ser detectável, não ter problema de saúde, não transmitir", diz.

"Uma das pacientes estava dizendo que até foi na primeira consulta, e que marcaram o retorno um mês depois para, quem sabe, ela começar o antirretroviral. Isso é completamente fora dos protocolos. O protocolo da Organização Mundial de Saúde é: testou, começa a tratar no mesmo dia", diz.

Preconceito

Outro tema que o trio de especialistas debateu foi o preconceito contra soropositivos. Para Alessandra, a repercussão dos transplantes de órgão infectados com o HIV escancarou o estigma da sociedade acerca do tema. "Basta uma notícia para todo aquele medo, aquela desinformação que a gente acha que já tinha melhorado, voltar", diz.

O médico Fábio Mesquita também falou sobre o estigma acerca do HIV. "Me chocou o fato de que voltou aquela ideia de que 'poxa vida, acabou a vida das pessoas porque elas contraíram o HIV', o que não corresponde à realidade neste momento", diz.

"As pessoas vão ficar com medo de contrair HIV numa transmissão de sangue ou num transplante. Milhares de pessoas na fila de transplante vão ficar com medo de que podem não só HIV, mas sem controle de qualidade, podem contrair hepatite, hepatite c, sífilis. Aquele exame de sangue que antes era uma segurança absoluta numa transfusão, a gente perdeu, por conta da mesma questão: não há supervisão", diz.

Assista à live completa:


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