
A cetamina , medicamento usado como sedativo e anestésico, mas que também causa efeitos alucinógenos , apresentou eficácia no tratamento de depressão severa, segundo uma tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) .
A substância ficou mais conhecida após Matthew Perry , ator do seriado " Friends ", morrer por overdose de cetamina em outubro de 2023 . Foram encontrados "altos níveis de cetamina" nas amostras de sangue do artista. Segundo especialistas, ele pode ter experimentado "efeitos agudos e letais" do medicamento.
“Com os altos níveis de cetamina encontrados em suas amostras de sangue, os principais efeitos letais seriam tanto da superestimulação cardiovascular quanto da depressão respiratória”, diz o relatório que apontou a causa da morte do ator. Outros fatores contribuíram para a morte, como o afogamento na banheira e a presença de doença arterial coronariana.
Apesar de também ser usada como droga recreativa, a cetamina é reconhecida internacionalmente como uma das maiores revoluções em saúde mental das últimas décadas.
A responsável pela pesquisa da UFRGS, Ana Paula Anzolin , contou em entrevista ao Portal iG que a mesma molécula da substância pode ser anestésica, droga recreativa ou medicamento. A especialista é farmacêutica, PhD em Bioquímica e atualmente realiza pós-doutorado em Psiquiatria e Ciências do Comportamento no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS).
Tratamento inédito para a depressão

O estudo feito por Anzolin sugere usar sinais de inflamação no corpo para identificar tipos específicos de pacientes e aplicar cetamina sob a pele como um tratamento de ação rápida. O protocolo desenvolvido avalia os benefícios do medicamento em pacientes com Transtorno Depressivo Maior (TDM) e risco suicida, além de suas alterações bioquímicas.
O estudo com cetamina surgiu da dificuldade em tratar a depressão , especialmente em casos mais graves ou resistentes aos tratamentos tradicionais. Segundo a pesquisadora, muitos pacientes não respondem bem aos antidepressivos comuns, que costumam demorar para fazer efeito — um problema ainda mais sério em pessoas com alto risco de suicídio.
“A necessidade de uma padronização de protocolo terapêutico para a cetamina e a identificação de biomarcadores para monitorar a resposta ao tratamento também foram fatores motivadores”, conta a doutora.
Etapas do estudo
Ana Paula conta que o grupo de pesquisa que ela integra já observava evidências de que o TDM, em pacientes com início antes dos 30 anos, poderia ter origem orgânica. Para investigar essa questão, foram analisados 234 indivíduos, divididos entre início precoce e tardio da depressão.
Paralelamente, o grupo também investigava os efeitos da cetamina em seu uso como anestésico. Para isso, 26 pacientes dos hospitais de Clínicas e Moinhos de Vento foram incluídos em um protocolo naturalístico de pesquisa.
"O protocolo envolve a administração de cetamina subcutânea começando com uma dose de 0,5 mg/kg, ajustada pelo psiquiatra assistente conforme a resposta do paciente na primeira sessão. Em casos de resposta clínica insatisfatória, uma segunda infusão era administrada dois dias depois, com um incremento de 10% na dosagem", explica a pesquisadora.
O procedimento foi repetido até que o paciente apresentasse uma resposta clínica satisfatória, mantendo-se a mesma dosagem em sessões subsequentes — no máximo de 8 a 10 sessões, realizadas duas vezes por semana, durante a fase de tratamento. Após essa etapa, os participantes foram acompanhados por um período de seis meses.
"O que o torna inédito, ou pelo menos um avanço, é a padronização do método de administração da cetamina subcutânea, que além de contribuir para a eficácia terapêutica, pode facilitar a implementação de estudos controlados de larga escala, indispensáveis para a validação da cetamina como tratamento seguro e eficaz para a depressão e prevenção do suicídio", aponta.
Resultados
A análise de pacientes que seguiram o protocolo mostrou melhora expressiva nos sintomas depressivos e uma queda significativa nos pensamentos suicidas. Os dados indicam uma relação direta entre a dose administrada e a resposta clínica: à medida que as doses aumentavam, foram observadas melhorias na depressão, na ideação suicida e no funcionamento geral dos pacientes. Em média, a remissão desses pensamentos foi alcançada após oito sessões.
Ao fim da fase de tratamento, dois terços dos pacientes (66,7%) zeraram os escores na Escala de Avaliação do Risco de Suicídio de Columbia (C-SSRS), enquanto os demais (33,3%) apresentaram uma redução de 50% ou mais nos sintomas de depressão, segundo a Escala de Hamilton (HDRS).
A melhora clínica foi mantida durante os seis meses de acompanhamento após o tratamento. Além disso, o estudo classificou a cetamina subcutânea como um tratamento eficaz e bem tolerado pelos pacientes.
Efeitos colaterais
A maioria dos efeitos colaterais foi considerada leve e transitória. O sintoma mais comum foi dissociação, observado em 90% dos pacientes, seguido por náusea (30%), vômito (20%), ansiedade (15%), aumento da pressão arterial (15%) e dor de cabeça (10%). Esses efeitos desapareceram sem necessidade de intervenção médica. A dissociação, por exemplo, surgia logo após a administração da dose e se resolvia em cerca de uma hora, diminuindo com as sessões seguintes.
Um capítulo específico da pesquisa também relata um caso isolado de reação alérgica, com urticária no rosto e tronco, atribuída à ativação de mastócitos, explica Anzolin. A reação foi controlada com o uso de prednisolona oral e não voltou a ocorrer nas aplicações seguintes.
Próximos passos
Ainda não há planos concretos para levar o protocolo com cetamina ao SUS ou à rede privada de forma ampla. No entanto, os especialistas envolvidos na pesquisa discutem a viabilidade e os benefícios que poderiam tornar essa ampliação possível no futuro.
Um dos principais pontos destacados por Anzolin é a padronização do método, que pode facilitar a realização de estudos clínicos controlados em larga escala, que podem validar a cetamina como tratamento seguro e eficaz.
"A via de administração subcutânea se destaca por oferecer vantagens como administração eficiente, segurança e redução no tempo de espera para os pacientes. A possibilidade de administração ambulatorial facilita o acesso ao tratamento e minimiza o risco de reações adversas", observa a especialista.
A simplicidade dos equipamentos e a menor demanda por profissionais especializados tornam o método mais acessível para países em desenvolvimento, como o Brasil, onde a cetamina intranasal ainda é cara. Para a doutora Ana Paula, isso reforça o potencial de levar o protocolo ao SUS no futuro.
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