Duas centenárias me contaram o segredo de chegar aos 100 anos

Centenárias, geriatra e demógrafa apontam fatores que contribuem para envelhecer com saúde

Clarita, à esquerda, e Alayde, à direita
Foto: Reprodução/Terça da Serra
Clarita, à esquerda, e Alayde, à direita

Há algumas décadas, a meta de chegar aos 100 anos era considerada ousada. Hoje, ainda é razoavelmente difícil, mas não impossível: o IBGE  contabilizou 37.814 pessoas no Brasil que completaram um século de vida.

O número pode parecer pequeno, mas representa uma alta de 66,7% em 12 anos. A expectativa de vida aumentou, tornando mais provável uma pessoa poder atravessar tantas décadas e entrar para um - ainda - seleto grupo.

Neste grupo estão Clarita Carmo Ferrari Gonzales, 101 anos, e Alayde Machado Vieira, 104 . As duas compartilharam ao Portal iG, suas histórias de vida e o que consideram o “segredo” para a longevidade.

Memórias

Clarita cresceu em Santa Teresa, no Espírito Santo, a 78 km de Vitória, em meio aos descendentes italianos que chegaram ao Brasil após a abolição da escravidão, assinada em 1888.

Ali, como diz, “éramos todos uma grande família”. Sua noção de parentesco ia para além dos pais e dos oito irmãos, e se estendia aos vizinhos, aos amigos e a toda a comunidade.

Para dona Clarita, a infância na cidade considerada pioneira na imigração ítalo-brasileira foi muito enriquecida pelas tradições que chegaram da Europa. Mais tarde, atuando como professora, casou-se com um espanhol vegetariano convicto que abriu restaurante do gênero.

Já dona Alayde cresceu na divisa do Rio de Janeiro com o Espírito Santo, em Porciúncula, onde o pai administrava “o melhor hotel da região”.

O movimento constante de hóspedes, viajantes e trabalhadores marcaram seus primeiros anos de vida. 

“Eu era muito feliz. Andava muito de bicicleta, na minha cidade tinha muito circo, então a gente fazia perna de bambu para imitar as pernas de pau dos palhaços. Todas as casas tinham quintais, e os quintais tinham árvores muito frutíferas”, relembra.

Vida em comunidade

Em seu relato, Alayde ressalta várias vezes a importância do trabalho e de estar em contato com as pessoas. Durante anos, atuou em um posto de saúde - segundo ela, “pobrezinho, sem remédio, uma tristeza”.

Lá, conviveu diariamente com a vulnerabilidade social, o que ajudou a reforçar sua visão comunitária, pois “a gente sempre tinha que dar um jeito, ninguém ficava para trás”.

Seu trabalho no posto ajudou várias pessoas, mas, mesmo fora do serviço, dona Alayde sentia quando via alguém passando necessidade. Ela conta de uma família que vivia em uma casa muito pequena: o casal já tinha três filhos e a mulher estava grávida. Incomodada com a situação, saiu pelas ruas em busca de doações e materiais. Em poucos dias, conseguiu arrecadar o suficiente para ampliar a casa - e não parou por aí: também articulou, junto à prefeitura, a doação de roupas de cama novas.

“Eu não sossegava enquanto não ajudasse quem precisava. Tanto que depois que me aposentei do posto de saúde, um colega veio me dizer que eu fazia muita falta lá, porque eu era a única que lia o Diário Oficial. Acho que eles não sabiam ler direito”, conta.

Alayde passa grande parte de seu tempo no ateliê, onde produz peças em crochê e ajuda funcionários do Terça da Serra a desenvolverem a habilidade
Foto: Reprodução/Terça da Serra
Alayde passa grande parte de seu tempo no ateliê, onde produz peças em crochê e ajuda funcionários do Terça da Serra a desenvolverem a habilidade

Viver cercada de pessoas pode ser um dos segredos da longevidade

As memórias das duas idosas giram em torno da vida sempre cercada por outras pessoas, nunca isoladas, jamais sozinhas. Companhias constantes, seja para dividir alimentos, erguer casas ou para se divertir.

Para a médica geriatra Mariana Silveira, que atende no Terça da Serra, rede de residencial sênior onde moram Alayde e Clarita em Petrópolis (RJ), esse aspecto não é uma coincidência.

"Olha a importância das nossas raízes, como mesmo após tantos anos elas se voltam para isso, para os pais, a cidade, a história. A convivência social faz muita diferença, e isso é parte do que a gente faz aqui”, destaca.

Também é por isso que, quando perguntada sobre o que mais a surpreende atualmente, dona Clarita fez questão de pontuar o individualismo e a violência que percebe no mundo.

“O ser humano tem tomado um caminho de muita maldade… Isso não pode existir. Porque o amor que deve interagir na nossa vida. (...) Eu guardo de meu marido uma divisa dele: se eu tenho duas camisas, uma está sobrando; uso uma de cada vez. É uma lição importante para meditar, porque hoje as pessoas que têm muito não gostam de dividir com quem precisa, pensam que o dinheiro é a salvação do mundo. Mas não é” , diz.

O que puxou a longevidade no Brasil para cima nos últimos anos?

As vidas centenárias de Clarita e Alayde atravessaram inovações que mudaram o rumo da história e ajudaram o ser humano a viver por mais tempo, como o uso de antibióticos, quimioterapia, vacinas modernas, melhorias na cirurgia e nos cuidados hospitalares.

Especificamente no Brasil, alguns fatores foram mais relevantes para o aumento da expectativa de vida: melhorias no saneamento básico e abastecimento de água e campanhas de vacinação em massa, que reduziram drasticamente a mortalidade infantil, como explica Vanessa Gabrielle Di Lego, doutora em Demografia e docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ao Portal iG.

“Em segundo momento, a chamada revolução cardiovascular, que é a redução das mortes em idades adultas, a criação do SUS em 1990, bem como as melhorias nos serviços de saúde e condições socioeconômicas contribuíram para os ganhos adicionais. No entanto, devemos lembrar que o Brasil é profundamente desigual, então as regiões passaram por essas transições em momentos e ritmos diferentes”, adiciona.

Para a especialista, apesar das estatísticas sobre centenários ainda esbarrarem em registros imprecisos, os resultados nas taxas de expectativa de vida mostram que o Brasil está, sim, envelhecendo.

Por exemplo: em 1900, um brasileiro vivia, em média, 33,7 anos. Em 1940, esse número subiu para 45. Em 2023, a expectativa de vida saltou para 76 anos.

Considerando os dois últimos períodos  (1940 e 2023), o brasileiro ganhou mais de três décadas de vida em pouco mais de 80 anos.

Esse ritmo é muito mais veloz do que o registrado em países como a França, que levou mais de 130 anos para conquistar a mesma variação.

Mais mulheres com 100 anos do que homens

Um estudo recente do Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica (MPIDR)  mostrou que países de alta renda observaram uma queda no ritmo do aumento da expectativa de vida, e concluiu que pessoas nascidas a partir de 1939 têm menos chances de chegar aos 100 anos. 

No entanto, ainda não foi possível observar essa tendência no Brasil segundo as evidências científicas disponíveis.

"Esse é o maior percentual de idosos da história. Há 12 anos, eram 7,4%. Isso a nível populacional. Quando falamos em longevidade, ou a nível individual, como o número de centenários também tem aumentando, tudo indica que esses valores continuarão aumentando no futuro", diz.

No Brasil, há mais mulheres centenárias que homens. Segundo o IBGE, 27.244 brasileiras faziam parte do grupo em 2022, ante 10.570 homens. Já no recorte geográfico, a Bahia sai na frente, com quase metade dessa população no último censo. Os estados de São Paulo e Minas Gerais ocupam o 2º e 3º lugar, respectivamente.

O segredo dos 100 anos pode ser mais simples do que parece

Foto: Reprodução/Terça da Serra
Clarita cresceu em meio à chegada dos italianos no Espírito Santo

Para Clarita e Alayde, nenhuma das transformações citadas pela demógrafa foi tão importante para a conquista do título de centenárias quanto a boa alimentação, um hábito compartilhado pelas duas.

“Meu pai era agricultor, e nós nos alimentávamos do que ele plantava. É uma lembrança muito forte da nossa vida de família. Nossa horta era regada com água de nascente, sempre tivemos alimentação saudável. Eu tinha vida muito ativa. Isso faz diferença”, relembra Clarita.

Alayde concorda: “a gente não bebia Coca-Cola, nada disso. Era suco de laranja, abacaxi, limão, não tinha refrigerante. A comida era feita com muita pimenta, hortelã, cebola, salsa. Comida de verdade”, pontua, adicionando que fica “muito triste com a alimentação de hoje”.

Como envelhecer bem?

Dra. Mariana explica que, além da dieta, outros hábitos colaboram para o envelhecimento saudável: praticar atividades físicas, manter o sono regular e evitar vícios são as práticas consideradas “de praxe” para viver mais e melhor.

Ela chama atenção, sobretudo, para a prevenção de quadros relacionados à idade.

Um grande desafio de viver por muito tempo são as doenças crônicas, que se acumulam ao longo dos anos. Por exemplo, no diabetes, são necessários cerca de 10 anos de descontrole para causar uma lesão grave. No passado, não se chegava a ter 10, 15 ou 20 anos com uma doença tão estabelecida” , diz.

E adiciona que hoje, felizmente, as gerações mais novas se preocupam mais com a saúde, o que deve colaborar para o envelhecimento da população.

Mas não basta só viver mais: é importante ter um envelhecimento bem-sucedido, que também tem a ver com autonomia e preservação da função cognitiva.

Estimular o cérebro desde cedo - ler, estudar, trabalhar, desenvolver habilidades e cultivar interesses - cria uma “reserva” capaz de atenuar sintomas de doenças como o Alzheimer, por exemplo.

“Antes a gente falava em envelhecimento ativo, mas isso remete um pouco à atividade física, e não é essa a questão. A dona Alayde mesmo, está na cadeira de rodas, mas consegue mandar em si mesma, no que vai comer, no que quer fazer, vai pro ateliê dela fazer crochê. Cuidar da alma e da mente é parte do que permite viver mais e melhor”, diz.

Os desafios do envelhecimento no Brasil

Por outro lado, o envelhecimento bem-sucedido não depende apenas das ações individuais. O contexto social, econômico e as políticas públicas também são fatores determinantes, como pontua Vanessa.

É por isso que, mesmo com todos os avanços na medicina, viver mais ainda é um desafio no Brasil, principalmente pela desigualdade.

"O avanço da longevidade nem sempre acompanha anos vividos com qualidade, e, devido à profunda desigualdade, esses ganhos não são iguais em todas as regiões", afirma.

Ela cita o estudo da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2019, que apontou que 57,1% dos idosos com 85 anos ou mais apresentavam múltiplas doenças, sendo mais prevalente entre mulheres.

"E, como há mais mulheres centenárias do que homens, é importante compreender como essa feminização do envelhecimento impacta a saúde. Além disso, mulheres enfrentam maiores taxas de pobreza e viúvez, tornando-se mais vulneráveis em idades avançadas", completa.

Ela ressalta a necessidade de não apenas investir em um envelhecimento saudável, mas também de ressignificar esse processo.

"Culturalmente, temos um culto à juventude, como sinônimo de vitalidade - e muitas vezes os idosos se sentem à margem da sociedade. Devemos lembrar que atingir idades mais avançadas será cada vez mais comum, e que viver grande parte da vida acima dos 60 anos é uma oportunidade de ressignificar a existência e entender que sempre é tempo de ter saúde, vitalidade e projetos futuros", conclui.