Jogos como pôquer, bingo e caça níqueis são os mais procurados por quem sofre de transtorno do jogo compulsivo
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Jogos como pôquer, bingo e caça níqueis são os mais procurados por quem sofre de transtorno do jogo compulsivo

“Ele pode perder mil vezes, mas se ganha uma, então ele esquece tudo o que já passamos de ruim e continua apostando”. Todos os anos a situação se repete na família de Valéria*. Ela e a mãe nunca sabem se poderão comparecer às festas de Natal e Ano Novo. “É nessa época que ele aposta tudo. Se ele ganha, vamos e presenteamos todos os nossos parentes. Caso contrário, além de ficarmos em casa, sabemos que perderemos algo: a TV, os computadores, o carro...”.

Leia também: Trabalho ou jogos podem ser tão viciantes quanto álcool ou drogas

A vida de quem tem transtorno do jogo compulsivo é realmente como uma montanha russa. São muitos altos e baixos, perdas significativas e ganhos efêmeros. Contudo, isso pode passar despercebido por quem está sofrendo com o vício.

Recentemente, a trama da última novela das nove da Rede Globo, “ A Força do Quere r”, contou a história de Silvana, que sofre com a dependência da jogatina . A personagem, interpretada pela atriz Lilia Cabral,  passou por diversos momentos de tensão por ter apostado dinheiro em partidas de pôquer e outros jogos de azar e acabou se dando mal, chegando a ter que vender carro, móveis, joias, e até se envolver com agiotas para se pagar as apostas.

Em muitas cenas foi possível ver Silvana dizendo que jogava apenas “para se divertir”, que “conseguiria parar quando quisesse” e que a família estava exagerando quando dizia que ela precisava de ajuda médica. Tudo fazia parte do roteiro fictício escrito por Glória Perez, mas engana-se quem acha que as frases ficam restritas à novela.

Silvana (Lilia Cabral) tem uma narrativa delicada em
Divulgação/TV Globo
Silvana (Lilia Cabral) tem uma narrativa delicada em "A Força do Querer": a personagem é viciada em pôquer

Para Pedro*, que hoje é divorciado e luta pela guarda compartilhada dos filhos, foram diversas as vezes em que ele repetiu esse mesmo comportamento quando a ex-esposa e os amigos alertavam sobre a busca por um tratamento. “Não admitia que era viciado. Eu ficava muito agressivo e achava que não era para tanto”, conta.

Vontade incontrolável

Mas, assim como outros tipos de compulsão , como compras, drogas, álcool, sexo e comida, o transtorno do Jogo Patológico, como também é conhecido, provoca um impulso que não é tão simples de ser controlado.

De acordo com Aline Sabino, psiquiatra da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo,  o Transtorno de Jogo Compulsivo é um quadro psiquiátrico caracterizado por um comportamento de jogo problemático e persistente. “O que pode levar o indivíduo a prejuízos e sofrimentos em todas as áreas de sua vida”, alerta a médica.

“Pessoas com compulsão por jogos têm comportamentos que provocam alterações em regiões cerebrais relacionadas ao prazer. Quanto mais jogam e apostam, maior é a influencia nessas regiões do cérebro”, explica o psiquiatra e pesquisador especializado no diagnóstico e tratamento dos distúrbios do humor Diego Tavares.

Ao executar o comportamento que gera prazer, os níveis de uma substância chamada dopamina, um neurotransmissor responsável por controlar os centros de recompensa e de prazer do nosso cérebro, aumentam. “Isso faz com que a pessoa busque de novo o mesmo comportamento. É como se o cérebro a obrigasse a fazer isso”, explica o psiquiatra.

Sintomas

A necessidade provoca diversas alterações comportamentais que podem ajudar a identificar se o indivíduo está sofrendo do transtorno, conforme exemplifica Tavares. “Muitas pessoas sentem dor físicas provocadas por essa necessidade incontrolável de buscar o prazer. Insônia, ansiedade, dificuldade de se concentrar, alteração no apetite, estresse, fixação pelo jogo a ponto de não sentir prazer em fazer mais nada são alguns dos sintomas”.

Para Roberto Miotto diretor técnico do Hospital do Arsenal do Rio de Janeiro e professor da pós-graduação em Psiquiatria na Pontifício Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o paciente também pode sentir preocupação com o jogo – envolvendo experiências passadas, especulação do resultado ou planejamento de novas apostas -, necessidade de aumentar as apostas para atingir a excitação desejada, esforço para tentar parar ou diminuir as apostas, além de vergonha, o que o leva a mentir para familiares, terapeuta ou outros, a fim de esconder a extensão do envolvimento com jogo.

Mesmo assim, Miotto ressalta que, em casos de dúvidas sobre se o paciente está ou não sofrendo da patologia, o mais indicado é buscar ajuda. “A consulta a um médico psiquiatra é fundamental para o claro diagnóstico e direcionamento para o tratamento adequado de cada caso”.

Entre os principais jogos escolhidos estão bingo, jogos eletrônicos, máquinas de caça níquel e pôquer. “Jogos em que há recompensa, onde se ganha dinheiro são os que causam dependência. Por isso, é difícil encontrar dependentes em jogos de vídeo-game de futebol, por exemplo, onde não há reforço de ganho prazeroso”, destacou Tavares.

Reconhecendo o vício

Buscar ajuda médica é um dos primeiros passos para tratar o transtorno, que pode estar associado à bipolaridade
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Buscar ajuda médica é um dos primeiros passos para tratar o transtorno, que pode estar associado à bipolaridade

Admitir que não e possível controlar suas atitudes não é uma tarefa fácil. Valéria conta que seu pai até hoje não fala com ela e a mãe sobre o assunto. “É um tabu . A gente já se acostumou a não perguntar mais para onde vai o dinheiro e os móveis. Sinto que ele nunca vai conseguir reconhecer que é viciado”, desabafa.

Para conseguir perceber que precisava de terapia, Pedro passou por diversas situações que afetaram sua vida pessoal e profissional. “Deixei muitas vezes de ser um pai presente, mentia para minha ex-esposa sobre o jogo, comprometia as nossas finanças, perdia dias no trabalho, não conseguia me concentrar em nada até que fui demitido... destruí todas as minhas relações”.

Quando o jogo se torna o centro de tudo na vida do indivíduo, é comum que os relacionamentos sociais sejam atingidos. “Os prejuízos e o sofrimentos afetam todas as áreas da vida do indivíduo de várias formas sendo as principais delas o endividamento, as brigas familiares, desemprego, envolvimento com atividades ilegais e a tentativa de suicídio”, alerta Aline Sabino.

Transtorno bipolar

De acordo com Tavares, a compulsão por jogos pode estar, na maioria dos casos, associada à outras doenças da psiquiatria. “Ela geralmente não é uma doença isolada. Muitas vezes acontece dentro de uma outra condição específica, como um sintoma do transtorno bipolar”.

O médico explica que essa doença, diferente do que se pensa, não tem a ver com personalidade. “Ela é como o oposto da depressão, que acontece quando a pessoa fica sem impulso nenhum e não consegue ter ânimo para fazer nada”, esclarece. Isso porque no transtorno bipolar o paciente aumenta os impulsos, que oscila por conta da alteração de humor - caso essa característica não seja percebida, o paciente pode ser considerado apenas com a compulsão, o que é menos comum.

Independente de como for feito esse diagnóstico, há tratamentos adequados, que se encaixam de acordo com o quadro do indivíduo, e podem ter resultados bastante positivos no comportamento. “Existem diversas formas de realizar tratamento para este tipo de patologia e para melhor eficácia o ideal é que sejam tratamentos combinados. Os mais comuns e com respostas satisfatórias são os que envolvem acompanhamento médico psiquiátrico, psicoterapia individual, grupos de apoio e atividade física”, afirma Aline.

ONGs e grupos de apoio também são alternativas válidas para quem procura ajuda e não sabe por onde começar, como foi o caso de Pedro. “Quando você se livra da vaidade, do sentimento de negação, tudo fica mais fácil. É possível viver bem e em paz depois do transtorno. Há dois anos eu não lembrava como era minha vida sem o vício. Hoje, a cada dia sem apostar eu comemoro como mais uma vitória.”

*nomes verdadeiros foram preservados a pedido dos entrevistados

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