O estudante universitário de 26 anos Vitor Pereira de Queiroz conta que a primeira coisa que fará quando receber seu transplante de rim será tomar um copo de um litro de água. "Parece tão pouco, mas eu tomo tudo uns golinhos só, não dá para tomar um copão. Vai ser a primeira coisa que eu vou fazer", conta.
Vitor é um dos 40.740 brasileiros que, em junho deste ano, aguardavam por um transplante de órgão. Assim como ele, mais de metade desses – 26.678 brasileiros – aguardavam ansiosamente por uma ligação do sistema de saúde afirmando que foi encontrado um rim compatível ao seu tipo sanguíneo.
Assim como esses 40 mil brasileiros, Vitor foi impactado pela pandemia de Covid-19. Quando a doença chegou ao Brasil, em março, ele estava com uma parente realizando os últimos exames para que ela pudesse doar seu rim ao estudante. Mas a pandemia "esfriou o transplante", lamenta Vitor.
Um levantamento da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), divulgado nesta quarta-feira (12), torna tangível o impacto da pandemia na doação e transplantes de órgão. Entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, houve queda de 26,1% no número de doadores de órgãos.
De janeiro a março, havia 18,4 doadores por milhão de brasileiros, já de abril a junho, quando a pandemia de Covid-19 se intensificou no país, o número caiu para 13,3 doadores por milhão de pessoas.
O número de transplantes também caiu no primeiro semestre de 2020 em comparação ao mesmo período de 2019. Houve queda nos transplantes córneas (44,3%), pâncreas (29,1%), coração (27,1%), pulmão (27,1%), rim (18,4%), e fígado (6,9%).
Quando a doação de órgãos é feita voluntariamente por um doador vivo – e não quando o órgão é retirado de uma pessoa que morreu –, como ocorreria com Vitor, a queda foi ainda mais brusca: 58,5% em transplantes de rim e 23,6% nos de fígado.
"Quando você faz um transplante você toma imunossupressor e isso abaixa a imunidade. Em época de pandemia, os médicos estão proibindo. Baixa muito a imunidade, é um risco maior, pode ter um coronavírus mais intenso, não é porque não querem".
Vitor, que nasceu com problemas nos rins, conta que quando passou por seu primeiro transplante, aos cinco anos, qualquer resfriado era motivo para tomar antibiótico.
Para que não ocorra a rejeição do órgão transplantado é necessário que a imunidade do paciente permaneça baixo, o que é um risco maior para uma cirurgia que ocorrerá em meio a uma pandemia que já infectou mais de três milhões de brasileiros.
Vitor, que está na lista de espera desde janeiro de 2018, chegou a receber uma ligação de um dos seus médicos na última quinta-feira (6), avisando que havia um rim disponível para ele.
"Eu to em choque, porque a fila para mim não tava dando nada. Não é uma fila, é um cadastro. Se você for mais compatível com o rim, você recebe o órgão. Não tem posição", explica.
Contudo, o órgão não era tão compatível e ele teria que abaixar muito sua imunidade, colocando-o numa posição de alto risco à Covid-19 . Seu médico, então, preferiu abrir mão deste rim e esperar pela doação da parente de Vitor.
"Era um transplante de alto risco . Eu teria que tomar muito remédio para abaixar minha imunidade", conta.
Nos últimos tempos, no entanto, seu médico preocupado com uma vacina decidiu retornar os exames da parente de Vitor para que o transplante ocorra em setembro, mesmo com os riscos de contágio pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Como o rim dela é mais compatível com o dele, não será necessário abaixar tanto a imunidade do jovem.
"Tá perto demais, eu fico programando todo meu calendário. Você fica muito feliz que sua vida pode voltar à normalidade. Eu to bem esperançoso", conta Vitor.
Mas enquanto isso não acontece
"Eu faço diálise diária. Eu faço de segunda a sábado. Duas horas todos os dias, sentado sem fazer nada", relata Vitor.
A hemodiálise é similar ao processo de doação de sangue. Tubos são conectados ao corpo para que ocorra a remoção de substâncias do paciente, já que devido à ausência dos rins, a pessoa não consegue filtrar essas substâncias. Os equipamentos conectados ao tubo filtram o sangue e devolvem à pessoa com menos impurezas.
"É chato, mas minha vida melhorou bastante, porque como eu não tava filtrando direito, você se sente mal, o corpo fica pesado. Depois que eu comecei a fazer, eu me sentia melhor, mais leve. Eu posso beber mais líquido, porque como eu não tenho rim, eu preciso controlar o líquido", conta.
Apesar disso, o processo da diálise complica bastante sua vida. São duas horas de diálise, mais uma hora e meia entre locomoção e preparo para o procedimento. São três horas e meia que ele perde todos os dias, com exceção de domingos.
"O fato de vir no hospital todo dia é bem preocupante. Não teve nenhuma atenção especial com os pacientes que fazem diálise. E é complicado, porque é uma coisa que você tem que fazer todo dia ou pelo menos três vezes por semana. Eu só saio de casa para fazer diálise. Eu senti medo por um tempo. Hoje eu to mais tranquilo porque o hospital tem todo um protocolo".
Isso também causa empecilhos em outros aspectos de sua vida, como na busca por um emprego. "É limitante porque são três horas por dia que eu perco. Eu canso bastante na diálise, porque tira bastante, você se sente exausto. Tenho restrição alimentícia e de líquido. Eu levo uma vida normal, mas sou limitado por algumas coisas", explica.
A história de Vitor
O estudante nasceu em Cuiabá (MT), em 1994, com uma malformação chamada válvula de uretra posterior . A doença não foi percebida durante seu pré-natal e aos 16 dias de vida, os rins de Vitor já estavam totalmente comprometidos. Foi nesta época que ele mudou para a capital paulista, onde vive até hoje.
A infância dele foi marcada por diversos procedimentos cirúrgicos , até que aos cinco anos ele realizou seu primeiro transplante de rim. Apesar de algumas restrições alimentares e remédios, o jovem consegui ter uma vida normal após isso. Contudo, em 2016, os rins transplantados começaram a apresentar complicações.
"Eu tinha infecção a cada dois meses, cada dois meses eu tinha que trocar um cateter", relata. "Todo transplante tem uma validade, 20 anos é um tempo muito bom, geralmente eles duram 10, 15 anos", explica o estudante.
Em 2017, ele começou os preparativos para realizar hemodiálise e, em janeiro de 2018, seu nome foi colocado na fila de transplantes. "Em dezembro de 2019, meus médicos concordaram em remover o rim , porque ele tava dando mais problemas que soluções", conta.
"O médico falou: 'como a fila demora em média 3 anos para achar um rim é melhor você entrar agora [2018] porque esse rim não vai durar muito mais tempo'", conta. Vinte meses se passaram desde que Vitor entrou na lista de espera, que devido à pandemia e a redução de doações, ficou mais demorada.
A sorte de Vitor foi ter encontrado uma prima de seu pai, Maria, que tinha um rim compatível e queria doar para ele. "Foi meio que um choque, eu liguei para ela e ela ficou super feliz. Ela tava super animada. Isso foi em janeiro. Em março, faltava dois exames que ela ia realizar, mas começou a pandemia e parou todos os processos. Eu perguntei para o meu médico e ele falou 'espera por enquanto'".
Vitor relata que está excitado e animado com a proximidade de realizar o transplante, que deve ocorrer em setembro. "Eu fiquei bem chateado quando eu removi meu primeiro rim . Você pensa que podia ter cuidado mais do órgão, mas você sabe que não é culpa sua, o órgão tinha uma validade e uma hora ia falhar", relata.
"Depois do meu [primeiro] transplante
, uma das minhas memórias mais marcantes é que meu médico trouxe um McLanche Feliz para mim. Foi uma das minhas memórias mais marcantes da minha vida. Eu nunca tinha comido, até os seis anos, chocolate, hambúrguer, porcaria, pizza e todas essas coisas. Foi bem marcante".