O Ministério da Saúde admitiu que a portaria editada em agosto deste ano e que criou obstáculos para realização da interrupção da gravidez em caso de estupro foi criada após pressão de entidades antiaborto. Documentos divulgados pelo ministério mostram que a pressão aumentou após a repercussão do caso da menina de 10 anos de idade que engravidou após estupro e que teve de deixar o Espírito Santo para ser submetida a um aborto legalizado.
No dia 28 de agosto, o Ministério da Saúde publicou a portaria nº 2.282 que criou novas regras para realização da interrupção da gestação de mulheres, adolescentes e crianças vítimas de estupro. A portaria previa que os médicos que atendessem vítimas de estupro que quisessem realizar o aborto eram obrigados a comunicar os casos às autoridades policiais. A portaria também obrigava a equipe médica a perguntar se a vítima gostaria de ver imagens do feto ou embrião pelo ultrassom antes do procedimento.
Entidades em defesa dos direitos da mulher afirmam que as mudanças poderiam afastar mulheres vítimas desse tipo de violência da busca pelo aborto legalizado.
Partidos ingressaram com uma ação contra a portaria no Supremo Tribunal Federal (STF). Em meio à repercussão negativa, o governo editou uma nova portaria, mantendo a obrigatoriedade da comunicação do estupro às autoridades policiais, mas retirando a necessidade de perguntar à vítima se ela gostaria de ver o feto antes do aborto.
A admissão de que o ministério editou a portaria de agosto após pressão de entidades antiaborto foi feita pelo órgão ao responder um pedido feito via Lei de Acesso a Informação (LAI).
"[...] quanto a justificativa e a fundamentação para a edição da referida norma, cabe esclarecer que o Ministério da Saúde foi provocado por meio de diversos ofícios da Defensoria Pública da União e de entidades da sociedade civil, em que recomendavam a revogação da Portaria", disse o ministério.
A portaria mencionada na resposta é a nº 1.508 vigente desde 2005. A portaria previa que as vítimas de estupro não precisavam registrar boletim de ocorrência.
O órgão divulgou, também, os ofícios e documentos que, segundo ele, embasaram a criação da portaria. O material mostra que a pressão para que o governo revogasse a portaria foi feita por duas entidades: Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) e Associação Virgem de Guadalupe. As duas são conhecidas como entidades antiaborto.
A pressão foi iniciada em janeiro de 2019, quando a Associação Virgem de Guadalupe, representada pela Defensoria Pública da União (DPU), pediu ao ministério que revogasse a portaria nº 1.508. A Ao longo de 2020, a DPU insistiu três vezes para que o ministério revogasse a norma, sem sucesso. Ao pedir apoio da DPU para lhe representar no caso, a presidente da Associação Virgem de Guadalupe, Mariângela Consoli, em e-mail, que a necessidade para revogação da portaria era "urgente" para evitar fraudes e "salvar vidas humanas". "A revogação desta norma se faz urgente pois evitará fraudes em relação à comunicação de estupros e consequentemente salvará vidas", diz um trecho do e-mail anexado aos documentos que foram encaminhados ao Ministério da Saúde.
Em abril deste ano, o Departamento de Ações Estratégicas (Dapes) do Ministério da Saúde disse que a demanda pela revogação deveria ser encaminhada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), vinculado ao ministério e responsável por receber demandas da sociedade civil em matéria de saúde pública.
"Embora todos canais de comunicação sejam válidos, é recomendável que manifestações dessa natureza tenham como destino o Conselho Nacional de Saúde, órgão pareado com o Ministério da Saúde (MS), responsável pela representação coletiva da participação da comunidade junto à União", disse o então diretor do órgão Maximiliano das Chagas em ofício assinado no dia 8 de abril.
A pressão aumentou, no entanto, após a repercussão do caso da menina de 10 anos de idade estuprada no Espírito Santo e que teve de viajar até o Recife para ser submetida à interrupção da sua gravidez. O caso ganhou dimensão após a militante extremista Sara Giromini vazar a identidade da menina em suas redes sociais. Centenas de ativistas contrárias ao aborto fizeram protestos na frente do hospital onde a menina foi atendida. A interrupção da gravidez foi realizada no dia 16 de agosto.
Três dias depois, no dia 19 de agosto, o IDVF encaminhou ofícios para o gabinete do Ministério da Saúde e para a Presidência da República pedindo a revogação da portaria 1.508 e das normas técnicas que estavam em vigor desde 2005. "Nesse cenário, tem-se que as normas e a portaria retrocitadas já não mais se compatibilizam com o ordenamento jurídico, padecendo de vício de legalidade, eis que para a apuração penal do crime de estupro tornou-se irrelevante a manifestação da vítima ou de seus representantes", diz um trecho do ofício.
O argumento da entidade era o de que a lei nº 13.718 de 2018 havia transformado o estupro em crime que não depende de denúncia da vítima para ser investigado. Dessa forma, para a entidade, os médicos seriam obrigados a comunicar os estupros às autoridades policiais.
Cinco dias depois, no dia 24 de agosto, o gabinete do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, encaminhou o ofício para o Departamento de Ações Estratégicas (Dapes), que ficou responsável por fazer uma análise do pedido feito pela IDVF.
Três dias depois, no dia 27 de agosto, o novo diretor do Dapes, Antônio Rodrigues Braga Neto - nomeado por Pazuello - assinou uma nota técnica favorável à demanda do instituto, revertendo o posicionamento do departamento de quatro meses antes. Segundo ele, revogação da portaria daria mais segurança jurídica aos médicos e ajudaria no combate à violência sexual.
"O registro de violência contra a mulher no prontuário médico e a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente, poderá servir de base para ações mais consistentes de prevenção e de combate à reincidência nesse tipo de violência", diz um trecho do documento.
No dia seguinte, a nova portaria foi publicada no Diário Oficial da União (DOU). Além de obrigar médicos a comunicarem os casos, a portaria também os obrigou a perguntar às vítimas se elas gostariam de ver imagens do feto ou do embrião antes do procedimento. Essa determinação não estava em nenhum dos ofícios enviados tanto pela Associação Virgem de Guadalupe quanto pelo IDVF, embora sejam uma prática defendida por entidades anti-aborto no Brasil e no exterior. A ideia é de que isso possa sensibilizar as vítimas de estupro a recuarem da decisão pelo aborto.
Associação atuou em caso de menina estuprada
A Associação Virgem de Guadalupe é uma das entidades que participaram de reuniões com autoridades capixabas em agosto durante a definição sobre se a menina estuprada seria ou não submetida à interrupção da gravidez. Ao jornal Folha de S. Paulo , a presidente da entidade, Mariângela Consoli, disse que sua ida a São Mateus (ES) fez parte de uma missão "institucional". Segundo o jornal, a delegação fez parte de um esforço do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) de impedir que o aborto fosse realizado. O ministério e a entidade, no entanto, negam terem tido essa intenção.
O caso é investigado pela Promotoria da Infância e Juventude de São Mateus.
Na sexta-feira, reportagem do jornal O Globo mostrou que a Associação Virgem de Guadalupe é uma das entidades que receberam recursos do programa Pátria Voluntária, presidida pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Segundo dados do programa, a entidade recebeu R$ 14,7 mil do projeto Arrecadação Solidária, um braço do programa.
Questionada pela reportagem, Mariângela disse não saber quem teria indicado a entidade para receber os recursos.
Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu às questões sobre a pressão feita por entidades antiaborto. O órgão enviou uma nota informando que a portaria nº 2.282 já havia sido revogada e que a nova norma visava manter "apoio e segurança jurídica aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento".
A nota diz ainda que o objetivo do ministério é "proteger as vítimas e reduzir o número de casos de violência sexual contra mulheres e crianças".
Leia a nota na íntegra:
"O Ministério da Saúde publicou no dia 24 de setembro, no Diário Oficial da União (DOU), a Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que dispõe sobre os procedimentos de interrupção da gravidez, nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
A alteração foi realizada após contribuições técnicas para adequação da Portaria nª 2.282, de 27 de agosto de 2020. A normativa mantém o apoio e a segurança jurídica aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento, uma vez que a Portaria está adequada à legislação vigente.
O objetivo é proteger as vítimas e reduzir o número de casos de violência sexual contra mulheres e crianças, já que, como a denúncia não precisa ser feita pela vítima, evita-se o constrangimento e o medo da exposição do abuso. Ao mesmo tempo, a partir da notificação policial, a Portaria torna possível a instauração de procedimentos que possam levar à punição rápida dos criminosos, garantindo, assim, a segurança e proteção de pacientes com indícios ou confirmação de abuso sexual.
Atualmente, o SUS conta com 97 serviços de referência para atendimento às vítimas de violência, com equipes multiprofissionais preparadas para acolher essas vítimas com tratamento humanizado. Os serviços de saúde desempenham um papel importante na vida das pessoas, especialmente das mulheres diante de uma situação de violência."