Muita gente já ouviu falar de médicos e enfermeiros que pegaram covid-19 no trabalho, mas uma das categorias de funcionários de hospitais mais afetadas é a de faxineiros e porteiros. No texto abaixo, o médico John Wright, da Enfermaria Real de Bradford, no Reino Unido, conta a história de uma faxineira que ficou doente e agora se sente culpada por ter levado o vírus para casa, o que teve um desfecho tráfico.
A primeira pessoa que vejo bem cedo todas as manhãs, quando chego ao hospital, é a faxineira Karen Smith. Durante dez meses de incerteza durante a pandemia, Karen foi a única constante, exceto por algumas semanas na primavera, quando ela adoeceu por covid-19.
Normalmente Karen limpa os escritórios do Instituto de Pesquisa em Saúde do hospital, mas na primeira onda da pandemia, no primeiro semestre de 2020, ela foi convocada para as enfermarias de pacientes com covid-19. Foi um momento assustador para todos, mas Karen se ofereceu para um turno extra na Sexta-Feira Santa, pois havia falta de pessoal - e naquele dia ela acha que se infectou.
Sabemos que trabalhar em hospitais aumenta o risco de infecção por um fator de três, mas esse risco não é distribuído de modo uniforme.
Os testes de anticorpos realizados em muitos hospitais do NHS (o SUS britânico) durante meados de 2020 mostraram que não eram os profissionais de saúde da UTI ou da "zona vermelha" que tinham a maior taxa de infecção, mas os faxineiros e os porteiros que trabalhavam nessas áreas. O risco de infecção era o dobro de seus colegas clínicos.
Este risco elevado para a equipe do hospital também se aplica a seus contatos dentro de casa.
Ao limpar o hospital em abril, Karen estava com medo não por si mesma, mas por sua família. Ela e seu marido, Mal, haviam se mudado para um trailer no jardim dos pais de Mal, enquanto sua mãe estava com câncer, e eles ficaram ali depois que ela morreu, para apoiar Malcolm, pai de 80 anos de Mal.
O marido, porteiro de hospital, estava se protegendo em casa porque tem doença pulmonar obstrutiva crônica, e o sogro dela era claramente vulnerável por causa da idade avançada.
Parar de trabalhar, entretanto, não era um luxo com o qual Karen pudesse arcar. E diferentemente de alguns funcionários do hospital que ficavam alojados em hotéis para proteger suas famílias, ela voltava para casa todas as noites.
Ela adoeceu no final de abril, seguida pelo marido no início de maio. O tempo estava quente, ela se lembra, enquanto eles tossiam e se abanavam no trailer.
"Era como estar em uma lata", diz ela. "Peguei covid e não consegui superar isso direito. E então Mal conseguiu e o dele estava em outro nível em comparação com o meu. Mas então o pai dele ficou doente, e foi um jogo completamente diferente."
O casal tinha que entrar em casa para cozinhar e usar o banheiro, mas fazia o possível para se manter afastado do idoso, que ia para outro cômodo sempre que um deles entrava em casa.
"Nós tentamos muito não passar para ele, mas ele adoeceu e ficou de cama. Honestamente, ele era como uma criança, confusa sob a colcha. Então começaram os calafrios e ligamos para 111 (telefone de orientação do sistema de saúde britânico). Disseram para levá-lo ao pronto-socorro para fazer o teste, e não pudemos acreditar quando deu positivo ", disse Karen.
Mais tarde, ele foi levado para o hospital. Tenho tenras lembranças de encontrar Malcolm na enfermaria depois que ele foi internado, lutando intensamente contra os sintomas de tosse e falta de ar por causa da infecção de covid. Ele era um homem gentil, bom, estoico e paciente.
Ele foi inflexível quanto ao cuidado de manter distância de Karen e Mal na casa, mas admitiu que ia mostrar a eles artigos no Telegraph and Argus, o jornal diário de Bradford, sempre que eu era mencionado nele. Eu me senti estranhamente culpado por ser a causa da transmissão.
Malcolm teve uma boa recuperação e estava ansioso para receber alta. Mas a covid é uma doença imprevisível e pode acontecer que melhorias nas condições do paciente sejam seguidas por uma forte deterioração. E foi isso que aconteceu com Malcolm logo depois que ele chegou em casa.
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"Ele não queria voltar para o hospital - ele disse para pegar algumas pastilhas porque o ajudariam a respirar", disse Karen. "Mas nada poderia ajudá-lo, ele estava tão, tão doente. Tivemos que dizer a ele: 'Não, você tem covid e precisa de cuidados médicos adequados.' Ele era um homem tão adorável, Deus o abençoe."
Malcolm foi readmitido após duas noites em casa e morreu no dia 28 de maio.
Karen voltou ao trabalho. Mas, como muitas pessoas que tiveram essa doença, ela tem sofrido os efeitos colaterais, tanto físicos quanto mentais. Ela agora está usando uma bombinha para falta de ar, mal consegue sentir o gosto de algumas coisas sete meses depois e está constantemente cansada. Ela também está recebendo medicamentos para ansiedade por causa do medo de ter que voltar para as enfermarias de covid, onde potencialmente poderia ficar doente novamente.
E, no caso dela, acrescenta-se a dor de ter perdido um ente querido, mesclada com sentimentos de culpa.
"Quando começo a pensar nele, as lágrimas vêm e às vezes fico chorando quase o dia todo, limpando e chorando. Se eu estiver tendo um dia ruim, não consigo nem falar", diz ela.
"A culpa está sempre lá, já que nunca saberei com certeza de onde ele pegou covid. O pai de Mal não pôs os pés fora da porta, então na minha cabeça eu sinto tanta culpa, porque tivemos que entrar no casa, não tínhamos escolha. Eu penso em tudo aquilo, mas é difícil escapar disso, porque eu peguei, Mal pegou e então seu pai pegou. No fundo, acho que foi isso que aconteceu, e vai levar tempo para aceitar tudo isso. "
Karen foi encaminhada para aconselhamento psicológico, mas há uma longa lista de espera.
Ela e o marido também tiveram que esperar pela vacina, embora ambos já receberam as primeiras doses. Isso foi um grande alívio para Karen, pois qualquer coisa que reduza sua chance de reinfecção também a ajuda a lidar com sua ansiedade.
Se os responsáveis pelas unidades do NHS levarem a sério as informações científicas que temos, então, sem dúvida, eles deveriam vacinar faxineiros e porteiros primeiro.
O medo de transmitir o vírus aos nossos entes queridos em casa é o fantasma que assombra todos os funcionários da linha de frente de combate ao coronavírus. Muitos ficaram isolados durante a primeira onda da pandemia, mas esta nunca foi uma abordagem sustentável e, com um vírus tão contagioso e um ambiente em que ele é tão prevalente, a transmissão para os familiares é infelizmente comum.
Karen e Mal personificam esse risco ocupacional e seu potencial impacto mortal.
Diário da linha de frente
John Wright, médico, professor e epidemiologista, é o chefe do Instituto de Pesquisas em Saúde de Bradford, e veterano no combate a epidemias de cólera, ao HIV e ao ebola na África sub-saariana. Ele tem escrito um diário sobre a pandemia de covid-19 para o site da BBC News e gravado relatos para a BBC Radio. Seu perfil no Twitter é @docjohnwright .
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