Diante das dificuldades do governo federal em abastecer o estoque de vacinas contra a Covid-19, 15 estados tentam firmar contratos com laboratórios por fora do Plano Nacional de Imunização (PNI), segundo fontes ligadas a gestores da área. A busca abrange produtos cuja comercialização ainda não foi aprovada no país, como a Sputnik V, cobiçada por pelo menos menos quatro governadores.
Já o presidente Jair Bolsonaro, que durante meses rechaçou o combate do coronavírus por vacinas, agora defende que elas sejam incluídas no SUS e angariadas pela iniciativa privada, onde serviriam como um bote salva-vidas contra a crise econômica provocada pela pandemia.
O governo do Paraná firmou um acordo ainda em agosto do ano passado com o Fundo Soberano da Federação da Rússia para realizar no país os estudos de fase 3 da Sputnik V. A aliança ainda não saiu do papel, mas o governador Ratinho Jr. (PSD) afirmou que, “caso haja necessidade”, investirá R$ 200 milhões para “fazer a compra direta de imunizantes”.
Outros estados conversam com a União Química, laboratório responsável pela produção da vacina no Brasil. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), visitou ontem a sede administrativa do laboratório, em São Paulo, e assinou um ofício manifestando interesse na compra da vacina.
"Temos preocupações com o ritmo, o fluxo que se dará a liberação (de vacinas) nos estados, e tendo no território nacional uma empresa como a União Química, com a estrutura e a condição de produzir rapidamente o volume de doses e de ter acesso aos (insumos) enviados pela Rússia, nós temos interesse em acessar e, se for o caso, fazer a aquisição diretamente", explicou.
Segundo o presidente da União Química, Fernando de Castro Marques, Piauí e Rio Grande do Norte também já mostraram interesse em comprar diretamente lotes da Sputnik V. Outro interlocutor é o governador da Bahia, Rui Costa (PT).
"O Brasil se comporta como se o mundo inteiro estivesse se ajoelhando para vender vacina para nós", criticou Costa. "Os países não têm vacina para si próprios, muito menos para ficar atendendo a caprichos burocráticos das instituições brasileiras".
O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), também tem dito que seu estado vai conversar com laboratórios sobre a possibilidade de fazer compras diretas, mas que a prioridade das autoridades capixabas será esperar a distribuição a ser feita pelo governo federal.
A Sputnik V ainda não teve uso emergencial aprovado pela Anvisa. De acordo com a agência, a União Química não apresentou todos os documentos necessários para avaliar o imunizante. Outra falha seria a falta de estudos de fase 3 no país. O produto foi aprovado na Argentina e na Hungria sem esta exigência.
O governo da Bahia pediu ao Supremo Tribunal Federal uma autorização para os estados importarem e distribuírem a vacina sem registro na Anvisa. O ministro Ricardo Lewandowski, então, determinou ontem que a empresa preste esclarecimentos em cinco dias sobre sua capacidade de produzir o imunizante no país ou de importá-lo da Rússia.
Procurada pelo GLOBO, a Pfizer afirmou em nota que não comentará eventuais negociações com governadores. Um encontro de representantes do laboratório com Leite, previsto para ontem, foi cancelado. Sobre a adoção de seu imunizante pelo Ministério da Saúde,a empresa afirmou que segue negociando “um possível acordo” com a União.
Já o governo de São Paulo diz que não participa de conversas com outras autoridades estaduais. A prioridade na agenda paulista é a produção de novas doses da CoronaVac. A expectativa é que o Instituto Butantan receba, no dia 3 de fevereiro, 5,4 mil litros de insumos do laboratório chinês Sinovac, material necessário para a fabricação, em 20 dias, de 8,6 milhões de doses.
Bolsonaro e o governador João Doria (PSDB) disputam a autoria do acordo que proporcionou a exportação de novos insumos para o Brasil. O embaixador da China no país, Yang Wanming, ressaltou ontem, em entrevista coletiva, que a CoronaVac não é um “instrumento político”:
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"Em relação à autorização da importação de insumos para a produção de vacina, acredito que todos sabemos muito bem que se trata de uma questão técnica, e não política. As vacinas são uma arma para conter a pandemia e garantir a saúde do povo".
Iniciativa privada
Entre os estados que aguardam os próximos passos do governo federal, sem procurar acordos paralelos, está o Rio de Janeiro. Em nota, o Palácio Guanabara afirmou que confia no Plano Nacional de Imunização e que já iniciou a distribuição das vacinas enviadas pelo Ministério da Saúde.
Bolsonaro manifestou ontem apoio à compra de 33 milhões de vacinas AstraZeneca/Oxford por grandes empresas, com doação de metade para o SUS.
"Brevemente estaremos nos primeiros lugares (de vacinação no mundo). Para dar mais conforto à população, segurança a todos e de modo que a nossa economia não deixe de funcionar", disse.
A revelação sobre os negócios, porém, provocou desconforto e levou quase todas as companhias a abandonar a transação, temendo a avaliação pela opinião pública de que estariam tirando de circulação um imunizante que deveria ser destinado a grupos de risco, como profissionais de saúde e idosos.
O endosso presidencial à mobilização da iniciativa privada não surtiu o efeito desejado. Os laboratórios AstraZeneca e Pfizer descartaram a possibilidade de venda de vacinas a empresas no país. Ambas as companhias sublinharam que sua prioridade é oferecer a vacina para a população em geral e governos.
Após uma reunião ontem no Palácio do Planalto com Bolsonaro, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, afirmou que as empresas só poderão comprar vacinas contra a Covid-19 de laboratórios que vendam exclusivamente para o setor privado. Bolsonaro, segundo Skaf, concordou com a restrição.
Skaf afirmou que desconhecia a transação de 33 milhões de imunizantes.
"O presidente declarou: se houver alguma chance, fora das vacinas que o setor público compra, se houver alguma oferta, de algum fornecedor, que só queira vender para o setor privado, desde que a vacina esteja aprovada pela Anvisa, o setor privado está à disposição para ajudar e o governo liberou que isso seja feito", disse.
Em uma demonstração da carência por vacinas para diversos governos nacionais, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, acusou ontem, no Fórum Econômico Mundial, os países ricos de reservarem mais doses do que o necessário para sua população, em detrimento das nações em desenvolvimento.
"Estamos preocupados com o nacionalismo das vacinas. Os países ricos estão segurando os imunizantes, e nós estamos dizendo: deixem essas vacinas em excesso que vocês encomendaram", condenou o mandatário.