Apenas 19% dos quase 5 milhões de vacinados no Brasil registrados pelo Ministério da Saúde até sexta-feira eram pretos ou pardos, segundo análise do GLOBO dos dados divulgados pela pasta. O percentual está muito abaixo da parcela da população que se identifica dessa forma: de acordo com o IBGE, 56% da população é negra (preta ou parda). Segundo a pasta, não há registro sobre a cor de 26% dos vacinados — ou seja, mesmo que todos eles fossem pretos ou pardos, o percentual de negros vacinados ainda seria menor que o da população brasileira.
Os dados apresentam indícios de que as desigualdades econômicas do país que fizeram dos negros um dos grupos mais desproporcionalmente afetados pela Covid-19 podem estar influenciando também para que pretos e pardos não apareçam entre os primeiros vacinados, sobretudo pela prevalência de profissões em que não se encontram muitos negros, como no campo da medicina.
De acordo com os dados analisados pelo GLOBO, por exemplo, entre os grupos em que os pretos têm sua maior proporção de vacinados estão moradores de rua, quilombolas, guardas civis e trabalhadores de limpeza. Entre os 336 moradores de rua sobre os quais há registro de vacinação, 64% são negros e 27% são brancos. Entre os 950 mil idosos com 80 anos ou mais, 41% são brancos e 18% são pretos ou pardos.
"O envelhecimento da população negra em geral é desigual em relação aos brancos. Existe uma tendência dos idosos negros chegarem a esse momento da vida com condições de vida bem diferentes se comparados em relação aos idosos brancos, por exemplo — afirma Alexandre da Silva, doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. — A trajetória de vida dos negros que que chegam aos 60 anos geralmente é marcada por mais estresses e cansaços relacionados à questão da sua cor, do racismo, e das desigualdades socioeconômicas, já que costumam ser mais pobres, com empregos piores. Quando essa pessoa chega aos 60 anos, o corpo já tem mais acometimentos do que outras pessoas, principalmente aqueles que causam casos mais graves de Covid", completa.
Um dos grupos que aparece representado para além de sua participação na população é o de amarelos: 10% dos vacinados se identificaram como amarelos, uma fatia muito maior do que a dos dados do IBGE, já que apenas 1% dos brasileiros são amarelos. Já em relação aos brancos, a vacinação segue em padrão equivalente ao da população: 4 em cada 10 vacinados se disseram brancos (4,2 brasileiros a cada 10 são brancos).
Alexandre da Silva destacou ainda o alto número de vacinações em relação à qual não há registro sobre a cor dos pacientes. De acordo com ele, é possível que muitos desses vacinados sejam pretos ou pardos. Segundo o especialista, durante toda a pandemia, o preenchimento do campo sobre cor tem sido feito de forma que impede uma análise ampla do impacto da doença entre negros.
"Isso é falar de uma outra forma de entender o racismo. Se a gente tem informação de idade, de sexo, por que essa categoria de raça ou cor é pulada? No Brasil, esse não é um marcador genético, mas social. Quando a gente defende a presença desse indicador nos relatórios oficiais é justamente para entender qual o impacto social da doença ou da vacina nesse grupo preto, pardo, branco ou amarelo", afirmou.
Fatores sociais são muitas vezes tão importantes como fatores fisiológicos na avaliação do impacto da pandemia. Aos 48 anos, Carlos Eduardo Rogério é negro e professor em uma escola pública de Franca, no interior de São Paulo. A região está na fase vermelha do Plano SP de flexibilização econômica, com alta taxa de ocupação de UTI. Mesmo com obesidade, Carlos teve que voltar a trabalhar neste mês com o retorno das aulas presenciais nas unidades de ensino de São Paulo. Apesar desses fatores de risco, ele faz parte da população que ainda aguarda seu lugar na fila de vacinação.
"Eu me sinto em risco. Obviamente, seguimos todos os protocolos, mas dentro da escola há o risco porque estamos em contato direto com o público, com as crianças, com outros professores, os funcionários", afirma.
Professores, como Carlos, fazem parte das profissões que cobraram a inclusão prioritária na vacinação, mas foram preteridos. Até o momento, a prioridade de vacinação é para trabalhadores de saúde e para idosos, dois grupos com subrepresentação de negros, seja pela dificuldade de acesso ao ensino superior, sobretudo no caso de profissões na área médica, seja pela baixa expectativa de vida entre negros.
Carlos não acredita haver necessidade específica de se priorizar os negros na vacinação. Mas defende se levar em conta as profissões em que a proporção de negros é maior. Entre médicos vacinados, negros são 11% (com 0,8% se identificando como pretos), brancos são 37% e 44% não identificaram sua cor. Já entre cozinheiros, 33% disseram que são pretos ou pardos, percentual similar ao de brancos.
"Eu penso nas pessoas que pegam transporte coletivo todo dia. Faxineiras, por exemplo. Não defendo vacinar apenas as faxineiras negras, mas todas. Por outro lado, é uma profissão em que a maioria são mulheres negras", diz.