Há um ano, em pleno feriadão de carnaval, enquanto muitos pulavam pelas ruas, indiferentes ao coronavírus, os funcionários do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, se deparavam com um paciente que demandava atenção extra.
Ele chegou ao pronto-atendimento por volta das 20h do dia 24 de fevereiro, segunda-feira. Tinha tosse, dor de garganta, febre, coriza. Um resfriado normal? Poderia ser, mas seu relato de viagem recente à Itália, onde a Covid-19 já fazia vítimas, acendeu um alerta na equipe de plantonistas.
"Ele tinha voltado da região da Lombardia três dias antes", lembra Fernando Gatti, infectologista que recebeu naquela noite uma ligação dos colegas do pronto-socorro e, a partir dali, assumiu o caso.
O protocolo vigente no país até então recomendava testar viajantes que tivessem passado por países da Ásia, recorda o médico, mas o Einstein havia combinado critérios mais amplos. Veio então o pedido ao paciente para que fizesse um teste PCR com coleta de material do fundo do nariz e da garganta. Até ali, um exame pouco usual. O homem em questão, um empresário morador de São Paulo então com 61 anos, porém, prontamente concordou.
"Ele foi um paciente bastante colaborativo, porque poderíamos indicar o exame e ele não concordar com a realização. Mas ele entendeu a importância, foi muito simples convencê-lo", diz Gatti.
Horas depois, por volta da meia-noite, sairia o primeiro resultado, conta Rúbia Santana, coordenadora do laboratório de biologia molecular do Einstein, onde o exame foi feito. Ela, que não estava no plantão (“não achávamos que isso fosse acontecer naquele momento”), tem vívida a lembrança do susto que tomou ao receber, em casa, o aviso do que se passava no hospital.
"Ficamos espantados e quisemos ter certeza de que não tinha ocorrido nenhum problema durante o processo. Repetimos todo o teste para confirmação", recorda a bióloga. "Naquela época, tudo era muito manual. Não tínhamos as tecnologias que temos hoje para ajudar no teste, então era tudo mais demorado. Imagina a nossa ansiedade querendo confirmar algo assim tão inédito e tendo que esperar aquele tempo todo!", lembra-se ela, que viu o laboratório, equipado ao longo do último ano com robôs para ajudar nas demandas da pandemia, passar de 3 mil para 80 mil testes por mês.
Sob pressão
Naquela madrugada de terça de carnaval foram executados novos testes e, pela manhã, a certeza: tratava-se do primeiro paciente com Covid-19 no Brasil.
O Einstein comunicou o fato às vigilâncias sanitárias e encaminhou a amostra para o Instituto Adolfo Lutz, ligado ao governo de São Paulo, pois, naquele período, para inaugurar as estatísticas sobre a pandemia, era necessária a validação de um laboratório de referência do estado. Após a checagem, a revelação foi feita à imprensa no dia 26.
Uma informação, no entanto, nunca foi dada. O nome do paciente é segredo, a pedido do próprio. Aliviar o estigma de ser o primeiro caso identificado no país, aliás, foi um dos principais pontos de atenção de Gatti no trato com o doente.
"No começo, mantive contato de forma virtual com ele três vezes por dia. Para ele e a família, tive que fazer também um pouco o papel de psicólogo. Sendo o primeiro caso no Brasil, ele se sentia bastante assediado, não se sentia bem com isso", diz o infectologista. "Sempre disse a ele que poderia ser qualquer outra pessoa, qualquer outro viajante daquela época. Por ser uma pandemia, a gente sabia que chegaria ao país de alguma forma".
Depois da assistência pelo celular, com o paciente em isolamento em casa, veio a necessidade de internação em leito semi-intensivo, para tratar uma pneumonia bacteriana, complicação comum após a infecção pelo Sars-CoV-2. A privacidade foi mantida, inclusive no transporte até o hospital, feito em ambulância.
A recuperação foi plena, sem sequelas, diz Gatti, que ainda faz contato esporádico com o ex-paciente. Em conversa recente, perguntou se ele gostaria, finalmente, de se manifestar em público:
"Ele prefere se manter no anonimato mesmo".