Nesta semana, a Venezuela se tornou o segundo país das Américas - depois de Cuba - a começar a usar uma vacina que ainda não foi aprovada por agências sanitárias.
O governo de Caracas recebeu de Havana e passou a administrar em áreas da capital o primeiro carregamento da Abdala, uma vacina desenvolvida pela ilha que ainda não possui autorização emergencial de nenhuma entidade médica reguladora.
A chegada dos primeiros lotes (oficialmente, a Venezuela diz que vai receber cerca de 12 milhões de doses) ocorreu poucos dias depois de autoridades da indústria farmacêutica cubana apresentarem os resultados da terceira fase de estudo de duas de suas vacinas mais avançadas.
O governo cubano garante que uma delas, a Soberana 02, teria uma eficácia de 62% com aplicação de duas doses.
Já a Abdala - a versão que chegou à Venezuela-, com três doses, teria a eficácia de mais de 92%, o que a tornaria um dos imunizantes mais eficazes contra o coronavírus desenvolvidos até agora.
Esses resultados de eficácia, entretanto, não foram validados por nenhuma agência reguladora, não foram publicados em periódico científico endossado por pares nem receberam a aprovação de qualquer organização de saúde internacional ou regional.
Por isso, gerou muita polêmica a decisão do governo Nicolás Maduro de usar uma vacina para a qual nem mesmo Cuba deu autorização para uso emergencial.
A Academia Venezuelana de Medicina, a ONG Médicos Unidos pela Venezuela e a Associação de Pesquisadores do Instituto Venezuelano de Pesquisa Científica (AsoInIVIC) expressaram "preocupação" com o que consideram "produtos de duvidosa credibilidade científica".
A oposição venezuelana também afirmou que, após a chegada da Abdala ao país, o governo fechou centros de imunização que estavam usando outras vacinas.
"O que aconteceu com as vacinas do sistema Covax? Agora os venezuelanos estão totalmente indefesos e sem possibilidade de escolha diante da imposição do produto Abdala, que não tem aprovação da OMS (Organização Mundial da Saúde). Exigimos vacinas aprovadas para todos", escreveu o Centro de Comunicação Nacional, no Twitter, organização do líder oposicionista Juan Guaidó.
Os países não precisam da aprovação da OMS para usar qualquer vacina. Usá-las ou não é uma decisão "soberana" de cada nação, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) esclareceu à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
O governo venezuelano, por sua vez, considerou que o recebimento das doses cubanas foi um "momento histórico" e anunciou que a Abdala se somaria às demais doses utilizadas no sistema de vacinação contra o coronavírus.
"Com o objetivo principal de proteger a saúde do povo venezuelano em meio à pandemia de covid-19, chegaram ao país as primeiras doses da vacina Abdala, desenvolvida por Cuba", informou a o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela, também no Twitter.
O que se sabe sobre a Abdala
Cuba tem uma vasta experiência no desenvolvimento de vacinas e há mais de três décadas produz grande parte dos imunizantes utilizados pela população.
No início da pandemia, o governo cubano decidiu não participar do sistema Covax, que visa levar vacinas aprovadas pela OMS às nações mais pobres, optando por desenvolver suas próprias doses.
Até o momento, as autoridades médicas cubanas afirmam estar desenvolvendo cinco vacinas contra o coronavírus. Soberana 02 e Abdala, segundo Havana, são as mais avançadas.
A única informação disponível sobre a Abdala é fornecida pelo governo de Cuba.
Até o momento, nenhuma revista científica publicou qualquer estudo sobre esse imunizante.
O imunizante foi desenvolvido por cientistas do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB) e leva o nome de um poema do escritor cubano e herói nacional José Martí (1853-1895).
Cuba afirma que, tanto para Soberana 02 quanto para Abdala, os cientistas usaram uma tecnologia conhecida como "vacina de subunidade", na qual proteínas derivadas do vírus aliadas a outras proteínas são usadas para desencadear uma resposta imunológica.
As autoridades sanitárias cubanas recomendam para Abdala um esquema de imunização em três doses (o maior número de doses entre as vacinas existentes), administradas em um período de 14 dias entre elas.
A maior proteção é alcançada depois de 42 dias, segundo Cuba. Na maioria das vacinas aprovadas internacionalmente, isso ocorre duas semanas após a segunda dose.
Cuba completou a terceira etapa de estudo da Abdala no fim de abril, embora já tivesse começado a administrá-la em "grupos de risco" de sua população antes mesmo de completar os ensaios clínicos ou saber os dados de eficácia.
Na semana passada, o CIGB anunciou no Twitter que sua vacina era "92,28% eficaz, no uso de três doses".
"Essa vitória só é comparável ao tamanho de nossos sacrifícios. E uma clarinada dos pobres da terra, uma advertência do poder que a resistência, a unidade, a consagração e o amor pela pátria tão belamente descrito pelos versos de Martí em Abdala", escreveu o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, no Twitter.
Em seu informe, autoridades cubanas não ofereceram dados sobre a eficácia da Abdala contra variantes do coronavírus. Porém, afirma que há uma "alta probabilidade" de que ela funcione contra variantes que "estavam em grande parte em circulação".
Os dados divulgados mostraram apenas eficácia contra a covid sintomática.
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As informações sobre a eficácia contra as formas graves e assintomáticas de covid-19 ainda são desconhecidas. Normalmente, empresas farmacêuticas internacionais publicam esse dado junto com a eficácia contra doenças sintomáticas.
Na semana passada, a mídia oficial da ilha informou que o CIGB havia enviado a documentação ao órgão regulador de medicamentos de Cuba para obter uma autorização de emergência, que ainda não foi concedida.
A controvérsia
O fato de Cuba ter começado a vacinar massivamente sem conhecer os resultados de eficácia de sua vacina gerou questionamentos entre a população, que inclusive se perguntava nas redes sociais por que seus dirigentes não tomaram a vacina em público para dar exemplo e transmitir confiança.
As autoridades sanitárias da ilha disseram que a decisão de usar os imunizantes sem autorização emergencial se deve à "situação epidemiológica" da ilha e porque eles se mostraram seguros.
A chegada da vacina à Venezuela gerou uma situação polêmica semelhante: embora Cuba já tivesse assegurado que ela era eficaz, nenhuma entidade reguladora ou científica independente havia endossado esses dados.
Como a Opas explicou, a decisão de qual vacina usar, como e quando é uma "decisão soberana" de cada país.
"A Opas não participa dessas ações e só recomenda o uso de vacinas quando as três fases dos ensaios clínicos forem concluídas e as vacinas forem aprovadas por uma agência reguladora ou incluídas pela OMS em sua lista para uso emergencial", disse um comunicado enviado em maio para a BBC News Mundo.
Segundo o texto, a OPAS/OMS entra no processo quando o produtor envia sua vacina à OMS para avaliação e inclusão na lista de uso emergencial.
"E para isso o imunizante deve ter passado pelas três fases, ser publicado em revista científica, e, se for aprovado também por uma agência reguladora, isso agiliza o processo", acrescentou.
O fato de a Abdala ter sido utilizada na Venezuela sem cumprir todos esses requisitos suscitou numerosos questionamentos por parte de organizações médicas independentes.
"A credibilidade de qualquer vacina, e sua aceitabilidade pela comunidade, é amplamente baseada na publicação dos resultados em revistas científicas de prestígio", disse a Academia Nacional de Medicina da Venezuela em um comunicado.
Nesse sentido, o Instituto Venezuelano de Pesquisa Científica apontou que a principal fonte de informação sobre os dois produtos tem sido o jornal Granma , órgão oficial do Partido Comunista e do governo cubano.
A entidade também criticou a falta de informações científicas válidas sobre a vacina Abdala e questionou que elas tenham chegado à Venezuela antes mesmo da aprovação do órgão regulador cubano.
"Consideramos que a Abdala ainda é uma candidata à vacina, portanto sua administração deve ser feita na modalidade de ensaio clínico em nosso país, com o consentimento informado dos voluntários", indicou a academia.
O que diz o governo venezuelano
O governo venezuelano defendeu a eficácia de Abdala e considerou sua chegada à Venezuela como um "triunfo".
"Esta vacina extraordinária, que é uma das mais eficazes do mundo, será incorporada ao plano de imunização da Venezuela e a população vai gostar", disse a vice-presidente do país, Delcy Rodríguez.
Ela também considerou que Cuba, com suas vacinas, estava "dando lições éticas, morais, científicas e tecnológicas".
"Aqui está o triunfo de Cuba. É um momento muito significativo poder compartilhar em nossa pátria a chegada da vacina Abdala, apresentada há dois dias à humanidade com uma eficiência de mais de 92%", acrescentou.
Embora Cuba e Venezuela sejam os primeiros países da América a começar a inocular sua população com vacinas ainda em fase de testes, eles não são os únicos no mundo a fazer isso.
Em julho passado, a China aprovou sua vacina, então na terceira fase de testes clínicos, para uso entre suas forças militares. Alguns dias depois, a Rússia autorizou o uso da Sputnik V quando ela ainda estava na fase 2.
O governo da Índia, em janeiro passado, também deu autorização emergencial para duas vacinas nacionais que não haviam concluído a terceira fase dos estudos clínicos.
A Venezuela, com cerca de 28 milhões de habitantes, recebeu de fevereiro até o fim de junho cerca de 3,5 milhões de vacinas russas e chinesas, segundo dados oficiais. O plano de vacinação no país tem caminhado lentamente.
O governo Maduro garante que tem 5 milhões de doses por meio do sistema Covax, mas elas não chegaram ao país.
"Os países ricos sabotaram este mecanismo de solidariedade para distribuir vacinas no mundo (...) Pretendem usar as vacinas como instrumento político, de chantagem, de extorsão como o bloqueio à Venezuela", disse Rodríguez.
Dados oficiais indicam que os casos de coronavírus no país ultrapassam 269 mil. Cerca de 3 mil pessoas morreram, mas sindicatos de médicos e a oposição afirmam que os números são maiores.