Depois de quatro meses de queda ou estabilidade, o número de hospitalizações por síndrome respiratória aguda grave entre idosos com diagnóstico confirmado de Covid-19 voltou a apresentar tendência de aumento no Rio de Janeiro. O alerta é do grupo de pesquisa Métodos Analíticos para Vigilância Epidemiológica, da Fiocruz (Mave/Fiocruz) e do Observatório Covid-19 BR, que traça modelagens estatísticas da pandemia a partir de dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), do Ministério da Saúde.
A informação consta numa análise realizada por nowcasting, um método estatístico que projeta números da pandemia não para o futuro, mas para o momento atual. Ele visa a evitar imprecisões causadas por um possível atraso nas notificações de casos — problema que pode afetar os números de até 15 semanas atrás, segundo o pesquisador Leonardo Bastos, responsável pelo estudo. O modelo que Bastos usa em suas projeções se baseia nos próprios dados históricos da Covid-19, levando em conta o comportamento dos números diante de fatores como o atraso nas notificações e a evolução temporal da pandemia.
"Com essa janela de 15 semanas, realizamos uma análise conservadora. Ou seja, consideramos que os dados epidemiológicos de uma semana qualquer só vão estar atualizados e consolidados em sua versão definitiva 15 semanas depois. Isso aumenta a segurança dos dados que levantamos", explica Bastos.
Os gráficos elaborados pelo grupo na última semana epidemiológica mostram que o número de internações por SRAG cresce em três faixas etárias: 60 a 69 anos, 70 a 79 e 80 anos ou mais, sendo este último o público com o aumento mais acentuado. O novo cenário se desenha num contexto em que o Rio de Janeiro, ao contrário de todos os demais estados do país, volta a apresentar tendência de alta para casos confirmados de Covid-19, conforme apontou o boletim do consórcio de veículos da imprensa deste domingo.
Segundo a análise da Fiocruz, que leva em conta a semana dos primeiros sintomas da SRAG, o grupo de 80 anos ou mais tem também o maior número absoluto de hospitalizações entre as faixas que registram aumento. Nesse público, o total de novos casos projetados na atualização mais recente é de 595 ocorrências. Em seguida vêm as pessoas de 70 a 79 anos, com cerca de 420 hospitalizações, e de 60 a 69, com aproximadamente 380.
Além disso, a faixa etária dos 80 anos ou mais é a primeira a registrar um aumento contínuo nas projeções semanais, movimento que começou, de acordo com os dados, na semana epidemiológica iniciada no dia 13 de junho — e que já perdura, portanto, há mais de um mês. Na semana seguinte, foi a vez dos idosos de 70 a 79 anos. No início de julho, a faixa dos 60 a 69 anos começou a refletir a tendência. Como resultado, todos esses grupos atualmente apresentam mais chances de crescimento do que de queda na quantidade de internados. Isso vai na contramão de todas as outras faixas etárias da população adulta, que mostram propensão à estabilidade ou à redução.
Os pesquisadores classificam as descobertas como preocupantes, já que os idosos foram a primeira parcela da ampla população cujos índices manifestaram o efeito positivo da vacinação contra a pandemia. Na avaliação de Bastos, ainda é cedo para definir as causas dos novos índices, mas já é possível levantar hipóteses. Uma delas se relaciona com os eventuais buracos na cobertura vacinal das pessoas com 60 anos ou mais.
"O Estado de São Paulo não fez o mesmo movimento nessas faixas etárias. Pode ser porque lá a cobertura vacinal entre idosos é maior do que no Rio. As internações que temos hoje nesse público podem ser de pessoas que atrasaram a segunda dose, ou que nem tomaram a primeira ainda", pondera o especialista.
Dados extraídos da plataforma LocalizaSUS e das estimativas populacionais do Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo (Seade) mostram que o número de idosos paulistas vacinados com ao menos uma dose da vacina já chegou a 120%, ou seja, superou as projeções da população total do estado para a faixa etária. Em comparação, o Rio se encontra no patamar dos 92% idosos contemplados com uma injeção do imunizante — o que indica, em números absolutos, que 221 mil idosos ainda estão à margem da campanha de vacinação (as informações estão sujeitas ao atraso na atualização dos dados). Só na capital, a quantidade de idosos que não voltaram para tomar a segunda dose da vacina beira os 100 mil, conforme o GLOBO mostrou neste sábado, a partir de informações da Secretaria municipal de Saúde (SMS).
Para o pesquisador Marcelo Gomes, membro do Mave, os novos números podem ter ainda uma outra causa: uma eventual saturação do efeito da vacina. A hipótese joga luz sobre a importância das medidas restritivas de combate ao contágio.
"Ainda não está muito claro o que está por trás desses números, mas um novo aumento de internações entre idosos pode significar que a vacina já entregou o que tinha de entregar, e que outros fatores seguem tendo influência sobre a pandemia. Não conseguimos reduzir o índice de transmissão, de modo que a população mais idosa, sobretudo dos 60 aos 69 anos, permaneceu superexposta", diz Gomes.
Em se tratando especialmente dos idosos com 80 anos ou mais, a ascensão da quantidade de internados talvez decorra, segundo o especialista, de uma possível queda do nível de proteção conferido pelas vacinas. Isso apontaria para a necessidade de reforço periódico da imunização desse grupo.
"Em termos de proteção coletiva, não se observa diminuição no efeito da imunização. Em pessoas com 60 a 79 anos, isso seria surpreendente, pois essa faixa foi contemplada há pouco tempo. Quanto à população acima de 80 anos, é aí que mora a grande discussão. Nessa idade, o sistema imune já não responde da mesma forma à vacina, um efeito da imunossenescência (redução da capacidade de resposta imunológica do organismo em idosos). Por isso será preciso avaliar a necessidade de uma terceira dose nesse público".
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Ambos os especialistas descartam que a mudança de panorama se deva à influência da variante Delta, a mais transmissível das linhagens do SARS-Cov-2 já catalogadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a segunda mais predominante nas análises de sequenciamento genômico do Estado do Rio. Bastos pontua que os números que dão base às projeções refletem uma situação epidemiológica anterior à chegada da variante ao estado.
"Ela podia já estar circulando, mas ainda não tinha sido confirmada. O que não quer dizer que o cenário não pode piorar em breve, com a contribuição dela", afirma o especialista.
Gomes lembra que a linhagem ainda está longe de se tornar predominante:
"O principal motivo disso é sobretudo comportamental. Ainda veremos como vai ser essa disputa de território entre a Delta e a Gamma, atualmente predominante. É uma questão de ecologia, de embate mesmo entre as linhagens. Ainda é cedo para pôr tudo na conta da Delta".
Crianças de 0 a 9 anos
A análise da Fiocruz também indica o aumento de hospitalizações por SRAG entre crianças de 0 a 9 anos com diagnóstico confirmado de Covid-19, único público que apresenta tendência de alta no indicador além dos idosos. Os pesquisadores ressaltam que essa faixa agora se encontra em sua pior fase em termos de internações desde o início da pandemia, com uma tendência contínua de aumento desde o fim de junho.
Para explicar o fenômeno, ainda obscuro para os cientistas, Bastos levanta uma hipótese: a das contaminações simultâneas.
"No caso da síndrome respiratória aguda grave, um aumento nas internações em crianças pode indicar o efeito de enfermidades sazonais, que costumam afetar especialmente a faixa dos 0 a 9 anos de idade. Vamos supor que uma criança dê entrada no hospital com SRAG causada por outro patógeno, mas também esteja infectada com o coronavírus. Ou seja, ela está assintomática para o SARS-Cov-2. Nesse caso, não se trata de uma SRAG causada por Covid, e sim de uma SRAG em pessoa com Covid confirmada. É uma possibilidade que levantamos tendo em vista que o padrão de aumento registrado nessa faixa etária não se repete entre outros grupos de menores de idade, como o de 10 a 19 anos, por exemplo", explica o pesquisador.
Trata-se de uma hipótese pode se estender às demais faixas etárias com alta nas hospitalizações. Estas, ao contrário do grupo de 0 a 9 anos, já foram contempladas pela campanha de imunização.
"Pode ser que, nos adultos, a vacina esteja prevenindo que a presença do coronavírus gere um quadro grave de Covid. E, por outro lado, pode ser que esses mesmos adultos estejam indo ao hospital com SRAG causada por outro agente. Nesse caso, teríamos mais um retrato do efeito positivo da vacina, que já se provou decisivo em outras parcelas da população".
O efeito da vacina
Responsável pelos cálculos do estudo de nowcasting da Fiocruz, Bastos é taxativo ao apontar a importância da vacinação no quadro epidemiológico do Rio de Janeiro. Ela pode ser a razão por que o aumento nas hospitalizações não se refletiu num aumento no número de óbitos, segundo mostra a análise.
"Pode ser também que as novas hospitalizações não tenham tido ainda desfecho clínico, e por isso o número de mortes ainda talvez aumente nas próximas semanas, que serão importantes", diz.
Segundo o especialista, contudo, houve pelo menos uma outra ocasião durante a pandemia em que a vacina desempenhou um papel determinante na prevenção de mortes, o que corrobora sua influência no panorama atual. Na terceira onda da Covid-19 no estado, enquanto as demais faixas etárias de 20 a 59 anos registraram dois picos de internações entre março e maio, o grupo das pessoas com 60 anos ou mais teve apenas um pico, em março.
"O repique observado entre as demais faixas etárias não se aconteceu entre os idosos. Mais um sinal de que as vacinas funcionam", afirma.