Com quase 35 milhões de pessoas sem acesso a água e perto de cem milhões sem coleta de esgoto, o Brasil entrou na briga contra o novo coronavírus já em desvantagem, avaliam especialistas. É que a falta de saneamento básico, além de dificultar práticas de higiene, impacta negativamente a saúde da população. Resulta em doenças como diarreia e malnutrição, além de afastamentos da escola e do trabalho e perda de produtividade.
Na ponta, as pessoas que não contam com água tratada e esgotamento sanitário são mais vulneráveis a doenças. Pior: com a crise, as desigualdades sanitárias colaboram para aprofundar as diferenças sociais, o que exigirá esforços ainda maiores do poder público na retomada.
"O Brasil teve possivelmente mais dificuldade de combater a pandemia pela limitação de acesso a saneamento. Pela evidência histórica, por termos de combater enfermidades ligadas à ausência de saneamento, perdemos recursos que poderiam ter sido usados para outras demandas e, neste momento, no combate ao coronavírus", diz Edson Gonçalves, pesquisador do Ceri/FGV. "Sistemas de saúde do mundo todo ficaram sobrecarregados por tratar-se de um evento extremo. Mas, aqui, o número de casos e de óbitos tem uma relação com esse cenário".
Em 2019, houve mais de 270 mil internações por doenças de veiculação hídrica no país, como diarreia e verminoses.
A pesquisadora Morganna Capodeferro, também do Ceri/FGV, destaca que a pandemia escancarou problemas da falta de saneamento.
"Marcou a importância do saneamento, que já ganhava projeção nos debates em razão do novo marco regulatório. Diversos organismos no país se empenharam em pesquisar a relação entre o saneamento e o coronavírus. E, por fim, a veiculação hídrica foi descartada. Mas a higiene é fundamental. E há milhões de pessoas sem acesso a água e esgoto, sem banheiro. A situação é muito séria", frisa ela.
Vulneráveis sofrem mais
Essa situação pede leitura detalhada das estatísticas. O Brasil tem 2,2% das moradias sem banheiro, segundo dados do Painel Saneamento Brasil, projeto do Instituto Trata Brasil (ITB), com números do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2019. No Sul, essa taxa é de apenas 0,2%; no Sudeste, de 0,3%. No Nordeste, contudo, chega a 5,1%, batendo em 9,8% no Norte. No Acre, uma em cada cinco casas não tem banheiro.
O Brasil soma mais de 20,7 milhões de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus, com mais de 579 mil óbitos, segundo dados compilados pelo consórcio de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo.
Léo Heller, pesquisador da Fiocruz-Minas, frisa que os mais vulneráveis são mais afetados pelo problema:
"O déficit não é distribuído de forma homogênea. Quem tem menos acesso a saneamento são as populações mais vulneráveis, que vivem nas periferias das grandes cidades, zonas rurais, em comunidades indígenas ou quilombolas, com baixa renda".
Na prática, diz ele, essa população fica à margem de outros serviços, como educação, moradia e saúde.
"Isso é determinante para mais doenças e mais óbitos por Covid-19, sobretudo pela falta de água para lavar as mãos. Essa prática é a mais importante para combater o vírus, além da máscara. Há hipótese, sim, de que isso tenha afetado a expansão da pandemia junto a essa população", pontua o pesquisador. "São pessoas que vão demandar uma atenção especial na retomada".
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O Ranking do Saneamento 2021, elaborado por Instituto Trata Brasil (ITB) e GO Associados, reflete a ponderação de Heller. Traz entre as dez cidades na lanterna do acesso ao sanamento, numa lista com as cem maiores do país, quatro capitais: Rio Branco (AC), Belém (PA), Porto Velho (RO) e Macapá (AP), todas distantes do eixo urbano central do país. Também estão no fim da lista grandes municípios da Região Metropolitana do Rio: Belford Roxo, Duque de Caxias, São Gonçalo e São João de Meriti.
"É um problema de saúde pública que funciona como um freio para toda a economia. Esse quadro sanitário é uma bomba para qualquer situação de pandemia. O SUS já é sobrecarregado em condições normais, com internações por doenças como diarreia. Quando a Covid-19 recuar, os hospitais vão voltar a encher com as doenças normais. Não vai ter trégua", diz Édison Carlos, do ITB.
Tarifa social
Especialistas recomendam a ampliação do uso de tarifa social no saneamento.
A Aegea criou a Águas do Rio, que cuidará das áreas contidas nos blocos 1 e 2 do leilão da Cedae: 26 municípios e 124 bairros do Rio no pacote. Alexandre Bianchini, presidente da Águas do Rio, afirma que a concessionária vai exceder a expansão da tarifa social prevista em contrato:
"A Cedae pratica menos de 1% de tarifa social. Vamos elevar a 5% da população da nossa área. Mas acredito que esse percentual será maior. O índice de desemprego do estado é de altos dois dígitos. Somos uma empresa privada, mas prestadora de serviço público".
A falta de saneamento bate diretamente na economia. A renda média do trabalho dos brasileiros sem acesso a água e esgoto equivale a quase um sexto da dos que contam com cobertura nesses serviços. O problema derruba a produtividade do trabalhador e o desempenho de outras atividades, como turismo e mercado imobiliário.
"Faltam condições de saneamento, além de moradia e alimentação. Sem isso, não tem produtividade, não tem renda, não tem propriedade. É a tempestade perfeita. Crescem as doenças, a fome, a desnutrição, cai ainda mais a capacidade intelectual e a produtividade de estudantes e trabalhadores. Vai freando a capacidade econômica e produtiva do país", diz Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil (ITB).
A universalização dos serviços de água e esgoto vai contribuir para melhorar o desempenho de crianças e jovens na escola e da força produtiva, com a queda na ocorrência de doenças por falta de saneamento, mostra pesquisa da consultoria Inter.B.
O estudo, que considerou dados do setor de 2008 a 2018, aponta que, ao levar água e esgoto a toda a população, é possível reduzir o número de internações por doenças diarreicas de 114,47 para cada cem mil habitantes para 62,58. Outro reflexo será alta de 0,22 ponto no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), passando de 5,68 para 5,9, nos anos iniciais do ensino fundamental (EF), e de 0,14 ponto nos finais, indo de 4,63 para 4,77.
Já o atraso escolar recuaria de 11% para 9,06%, nos anos iniciais do EF, e de 26% para 24,67% nos finais.
"Em adultos, as doenças diarreicas estão ligadas ao absenteísmo de trabalhadores, com impactos diretos sobre a produtividade. Nos jovens, estão ligadas ao absenteísmo escolar e à redução de capacidade cognitiva, que também afeta a produtividade futura", diz Arthur Rodrigues, que assina a pesquisa ao lado de Cláudio Frischtak e Manuel Faria.
Carlos, do Trata Brasil, avalia que investimentos no setor vão ajudar na retomada:
"Com as concessões e PPPs saindo, o setor vai gerar empregos nesse período de retomada".