Diferentemente do que diz o lema do governo, “mais Brasil e menos Brasília”, o Ministério da Saúde tem imposto políticas públicas na área sem acordo com estados e municípios. A pasta prevê, desde o final do ano passado, investimentos de pelo menos R$ 478,6 milhões em ações que não foram discutidas na ponta. Na prática, segundo gestores, a atuação pode gerar desperdício de dinheiro público, uma vez que os recursos não serão investidos nas necessidades mais urgentes da rede pública.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), a pasta editou pelo menos 13 normativas alterando políticas ou criando novos programas sem levar em consideração estados e municípios.
Em algumas delas, o ministério também modifica o mecanismo de distribuição de recursos de ações já existentes. A mais recente foi assinada pelo ministro na última quinta-feira para regulamentar a telessaúde no país e prevê cerca de R$14,8 milhões para informatizar Unidades Básicas de Saúde (UBS).
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A lei que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) determina que a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes da União, dos estados e dos municípios, é a instância para definir diretrizes e discutir a operação do sistema. Em conversas reservadas, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não esconde a má vontade com os secretários estaduais e municipais, e afirma que as medidas são para melhorar a gestão do SUS e economizar recursos.
Cuidado materno
Uma das políticas com recursos mais vultosos prevê cerca de R$ 169,7 para o novo programa Cuida Mais Brasil, que tem como foco a saúde da mulher e materno-infantil. A iniciativa tem como objetivo ampliar número de pediatras e ginecologistas nas UBS. O programa foi lançado em janeiro, antes de ser pactuado com estados e municípios, e desperta preocupações a respeito da continuidade. A portaria determina que os recursos a partir de 2022 dependerão de novo ato normativo do ministério.
Outra medida instituiu apoio financeiro para ações das equipes e serviços de Atenção Primária à Saúde destinados às pessoas com sequelas da Covid-19. O ministério fixou cerca de R$ 159,9 milhões para a iniciativa. Embora reconheçam a importância dos investimentos, os secretários destacam que é necessário que essas políticas sejam pactuadas com estados e municípios na comissão para garantir a implementação, caso contrário, não alcançam capilaridade.
A inversão de prioridades fica explícita em portaria de maio deste ano que reservou R$ 99,9 milhões para ações de atividade física na atenção primária. A medida prevê, por exemplo, contratação de profissionais de educação física, uma das promessas de campanha do presidente. A iniciativa também não levou em consideração necessidades de estados e municípios. Segundo fontes, o governo tem corrido para implementar políticas antes das restrições do calendário eleitoral.
A Estratégia Saúde da Família (ESF), uma das principais políticas de atenção básica do país, é um dos pontos que poderia receber reforço com o valor empregado pelo governo em políticas sem acordo com entes subnacionais. Atualmente, há 2.563 equipes de saúde da família aguardando credenciamento por parte do ministério. No total, são 15.660 agentes comunitários de saúde que esperam pela habilitação. De acordo com o Conasems, há ainda 1.805 equipes de atenção primária em espera.
O secretário de Atenção Primária à Saúde (SAPs), Raphael Câmara, argumentou em reunião da CIT que atender aos pedidos de credenciamento de equipes é uma “prioridade máxima”. Segundo ele, a secretaria analisa os recursos para que a sobra orçamentária seja utilizada na área.
Na semana passada, durante reunião da comissão tripartite, os presidentes do Conass, Nésio Fernandes, e do Conasems, Willames Freire, questionaram o secretário executivo do ministério, Daniel Pereira, a respeito da implementação de políticas pela pasta sem discussão com as redes estaduais e municipais.
"Cerca de 70% do valor das equipes de saúde da família é bancado pelos municípios. O Conasems está de portas abertas para dialogar e avançar. Não pactuar portaria, para mim é um desastre dentro do Sistema Único de Saúde. O Ministério da Saúde não vai assumir na ponta o papel de uma unidade de saúde para executar ação", disse Freire.
Nésio Fernandes cita como outro exemplo sem acordo com os entes o programa QualiSUS Cardio, lançado pelo ministério em maio. A política, que funciona por adesão, avalia o desempenho de estabelecimentos de saúde no atendimento à alta complexidade cardiovascular para calcular o financiamento para área, em combinação com os repasses já feitos usualmente. De acordo com o presidente do Conass, porém, questionamentos dos gestores não foram esclarecidos e os parâmetros foram publicados no Diário Oficial sem pactuação.
"São políticas que acabam tendo conteúdo de ilegalidade pois não respeitaram o devido processo legal e podem representar recursos públicos parados, porque não serão executadas, e isso é um prejuízo para o próprio governo federal. É possível que elas inclusive tenham vida muito curta", analisa Nésio Fernandes.
"Solicitamos onde a metodologia foi desenvolvida, quais estudos apontavam que ela de fato agregaria valor à política nacional, pois não é simplesmente achar uma formula matemática, e não tivemos respostas. Depois, voltamos a estabelecer contato com o ministério na perspectiva de que ele retome o mecanismo de cooperação que caracteriza a história do Sistema Único de Saúde, porque a consequência direta é a possibilidade de estados e municípios não executarem políticas que não são pactuadas."
Resposta da pasta
Ao EXTRA, o Ministério da Saúde afirmou que “atua em permanente diálogo” com conselhos estaduais e municipais de saúde. “Todas as políticas citadas foram discutidas amplamente com os conselhos, em diversas reuniões de alinhamento, onde os representantes foram ouvidos e participaram de todo o processo”, disse a pasta.