Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) projetam que o Brasil deve realizar o primeiro transplante de órgão suíno geneticamente modificado para ser humano até 2025. É o chamado xenotransplante, procedimento entre espécies, até pouco tempo inédito, que promete diminuir a fila de espera no país. O tempo, contudo, ainda pode se encurtar a partir de pesquisas em andamento nos Estados Unidos.
Dentre os órgãos que poderiam ser transplantados estão rins, coração, pele e córnea. Cientistas avaliam que o Brasil tem potencial para se tornar produtor de órgãos suínos a serem transplantados em humanos para toda a América Latina a partir do projeto “Sistematização do Método de Xenotransplante no Brasil”, desenvolvido pela FMUSP. O estudo busca modificar geneticamente os suínos para que possam se tornar doadores desses órgãos.
"Existe uma grande demanda reprimida por órgãos para transplante. Muitas pessoas morrem à espera do procedimento. Para suprir essa demanda, muitos métodos estão sendo tentados para conseguir os chamados órgãos adicionais, aqueles que se somam aos dos cadáveres por morte cerebral. Entre esses métodos, o que mais tem dado resultado é o xenotransplante", afirmou ao GLOBO o coordenador do projeto e professor emérito da FMUSP, Silvano Raia.
Estudos anteriores mostraram que animais como suínos são os mais compatíveis para a cirurgia, mas precisam ser geneticamente modificados. Um dos motivos para essa afinidade é a semelhança na fisiologia com humanos, apontam esses estudos.
A raça ideal para o xenotransplante é a Kunekune, pequena raça de porcos que vive isolada há quase 200 anos em Auckland. Nova Zelândia. O fato de esses animais alcançarem peso máximo de 130kg os torna mais compatíveis fisiologicamente, assim como o isolamento da espécie minimiza os riscos de transmissão de doenças e de contaminação por germes.
Há entraves, no entanto, para que o transplante entre espécies se torne uma realidade na rotina médica do Brasil. É preciso, por exemplo, o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Também não há leis que estabeleçam regras para o procedimento. Evitar a rejeição dos órgãos suínos é uma preocupação dos cientistas, que, por isso, fazem as modificações genéticas.
Alta demanda
A espera por um rim, que lidera a demanda no Brasil entre adultos, leva os pacientes a passarem anos na hemodiálise, processo no qual uma espécie de rim artificial filtra do sangue substâncias tóxicas, como ureia. Os dados mais recentes da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) mostram que 28.014 adultos e 401 crianças esperavam esse órgão no país até março deste ano.
"(O xenotransplante) vai evitar listas de esperas e despesas que são muito grandes para hemodiálise. O tratamento faz bem para pacientes com insuficiência renal durante anos, nos quais esperam um rim para transplantar. Se houver rins à vontade, acaba a hemodiálise. Também vai evitar custos de tratamento em fases terminais, como internação", explica Raia, aos 91 anos, cirurgião pioneiro em transplantes na América Latina.
Para atender à demanda, o docente explica que serão necessários cerca de 13 mil suínos por ano. Agora, a iniciativa da USP passa a ser uma parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). A universidade assinou com o ministério uma "carta de apoio" na última sexta-feira. O documento prevê que cada uma das partes investirá R$ 5 milhões no estudo.
"Trazer essa possibilidade, com a modificação genética desses animais, para que a gente produzir em condições totalmente controladas esses órgãos para transplante é um benefício muito grande do ponto de vista científico, tecnológico e também da qualidade de vida dos brasileiros", disse o secretário de Pesquisa e Formação Científica do MCTI, Marcelo Morales.
"O investimento é muito pequeno em relação ao retorno e à qualidade de vida que a gente pode proporcionar ao país".
A verba da pasta será destinada para a construção de biotério suíno, com nível de biossegurança dois para criar os primeiros animais geneticamente modificados em condições sanitárias ideais. A instalação deve ficar pronta em seis meses. A expectativa é de que a pesquisa, ainda em fase experimental, possa abrir novas fronteiras em relação aos transplantes.
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