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“Faz 28 anos que eu não sei o que é dormir tranquila e sem medo do futuro. É sempre uma ansiedade, uma angústia. Tenho medo do que vai acontecer com ele quando eu me for”, diz a professora aposentada Tânia* sobre o filho Lucas*, de 32 anos. Aos 4, ele foi diagnosticado no Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma condição caracterizada, sobretudo, por alterações na comunicação social, no desenvolvimento e no comportamento.
Quando Lucas foi diagnosticado, no início da década de 90, as estatísticas apontavam que 1 a cada 500 crianças era autista. Hoje, o CDC (Centro de Controle de Doenças Americano) estima que a população no espectro tenha crescido significativamente, de 1 para cada 36. O aumento no número de diagnósticos levou à ampliação do debate sobre o autismo em diversos âmbitos — entre eles, os desafios que o transtorno impõe aos cuidadores das pessoas no espectro.
E, por cuidadores, leia-se, especialmente, mães. É o que aponta o estudo “Cuidando de quem cuida: um panorama sobre as famílias e o autismo no Brasil em 2020”, realizado pela Genial Care. Segundo dados colhidos na pesquisa, 86% dos responsáveis pelo cuidado de crianças autistas são as mães. Os pais ocupam um lugar coadjuvante neste cenário, representando apenas 10% das respostas.
A disparidade no envolvimento no cuidado dos filhos resulta em um impacto significativo na saúde mental dessas mães. Um estudo divulgado no Journal of Autism and Developmental Disorders mostra que o nível de estresse experimentado por mães de autistas, por exemplo, assemelha-se ao estresse crônico apresentado por soldados combatentes. Dessa forma, elas estão muito mais suscetíveis a desenvolverem quadros de ansiedade e depressão com consequências graves.
O debate sobre a saúde mental materna no contexto do autismo se fortaleceu ainda mais nas últimas semanas, após o caso da mãe que matou o filho autista e, depois, se suicidou em Águas Claras - DF. Tânia diz que, apesar da tristeza pela notícia, não ficou chocada.
“Quem vê de fora pode achar lindo o discurso do mundo azul, mas é uma realidade dura. Todo mundo desacredita de você, olha pra você com pena. As pessoas excluem seu filho, você vê ele sofrendo e não pode fazer nada. Aí chega em casa e seu marido te trata como lixo, chega no médico e ele diz que seu filho nunca vai falar, vai ser um ‘nada’ (...) Aí vai na escola e ouve que seu filho não pertence. Eu passei por tudo isso. Hoje tenho orgulho da minha história, dele [Lucas]. Mas se eu te olhar e falar “nunca pensei nisso” [suicídio] seria uma mentira descarada”, desabafa.
A professora conta que hoje, felizmente, tem uma visão mais leve sobre a própria vida, mesmo com os receios em relação ao futuro de Lucas. “Foi só depois de encontrar uma equipe boa, que fez a diferença na vida do meu filho, que eu comecei a me acalmar. Hoje eu sei que ele tem pessoas além de mim para contar e ajudar ele no que for necessário (...) Mas eu jamais, jamais julgaria essa mãe”, conclui.
Os desafios da maternidade atípica
“As mães de crianças autistas têm muito mais dificuldades em uma série de áreas. Por exemplo, comprovadamente dormem menos horas, uma vez que crianças autistas na sua maioria têm transtorno do sono associado. E também, elas precisam fazer muitas coisas a mais do que mães de crianças não-autistas e acabam usando horas que seriam de sono para complementar atividades de trabalho e rotina da casa”, afirma a neurocientista e psicóloga Mayra Gaiato, fundadora do Instituto Singular.
Um relato que exemplifica a fala de Mayra é o da fotógrafa Bethania Alves, de 30 anos. Mãe de dois autistas - Nick Vitor, de 9 anos, e Luke Noah, de 6 - ela conta que a rotina da maternidade atípica é tão intensa que não permite descansos. “O diagnóstico em si não me afeta. O que me afeta são as demandas que eu preciso cumprir, dar conta, estar sempre disponível. Isso é cansativo, você vive em alerta 24 horas, não só na questão da educação deles, do cuidado, da manutenção, etc., mas sempre em alerta com horários, compromissos, agenda. Eu não paro um minuto”, diz.
Além das demandas diárias, que já são cansativas por si só, a falta de suporte do parceiro ou da família — a rede de apoio — também é uma queixa frequente entre as mães de autistas. “A solidão da maternidade atípica é real. A gente pode contar nos dedos de uma mão e ainda sobra dedo, as pessoas que a gente pode "contar" como suporte em casos de necessidade, quando eu preciso, por exemplo levar um em uma consulta ter com quem deixa o outro… Isso é um desafio muito grande, nem todo mundo sabe lidar com a condição deles”, afirma Bethania.
Todos esses desafios se somam, é claro, aos do próprio transtorno: as dificuldades na comunicação, a rigidez mental, as alterações sensoriais, a ansiedade e as crises fazem parte do quadro. Sem o acompanhamento adequado, esses sintomas podem trazer ainda mais sofrimento para o indivíduo e sua família.
Falta de recursos e de apoio desgastam as mães de autistas
Para Mayra, o desgaste na maternidade atípica se cria antes mesmo do diagnóstico. “As mães chegam no consultório pedindo ajuda, pedindo socorro, pedindo para alguém olhar para os filhos delas junto com elas, de uma maneira que não seja negando ou diminuindo a criança”, diz a psicóloga. Ela conta que muitas mulheres têm suas suspeitas tratadas com desdém pelas próprias famílias. “Elas chegam desacreditadas, chegam com os maridos achando que elas são super inadequadas por estarem vendo coisas nas suas crianças”.
Com o laudo, surgem outros desafios: garantir o acesso às terapias, a inclusão no ambiente escolar e, em alguns casos, a medicação. Todos esses fatores pesam em um lugar comum: o bolso. É o que aponta o estudo “Retratos do Autismo no Brasil em 2023”, da Genial Care em parceria com a Tismoo.Me: 73% dos cuidadores entrevistados concordaram que uma das suas principais dificuldades é, justamente, arcar com os custos do tratamento.
“Tudo é muito caro, terapias, medicações, etc. Dar o mínimo de suporte para eles custa caro”, afirma Bethania. “Eu sou uma mãe periférica que depende do SUS, mas por diversas vezes tive que pagar pra fazer algum procedimento com eles porque o SUS não dá conta. É muito difícil precisar de um serviço pro seu filho e não ter.”
Com a avaliação profissional e o diagnóstico, a vida de toda a família muda. A incorporação das terapias, por exemplo, já exige uma mudança no planejamento financeiro e na rotina, explica Gaiato: “se essa mãe não tiver possibilidades e recursos de todos os tipos, emocionais, financeiros, de suporte e de rede de apoio, ela não vai conseguir fazer de forma completa o que essas crianças precisam. Isso só aumenta a angústia e o desespero dela”, afirma.
Políticas públicas e acolhimento podem mudar esse cenário
“Por mais que o autismo hoje em dia esteja mais "popularizado", ainda existe um tabu que envolve a condição. Muita gente trata autismo como doença. Por mais que exista um CID, o autismo não é uma doença. A sociedade precisa entender isso de uma vez por todas”, afirma Bethania. Para a fotógrafa, além da rede de apoio, a conscientização acerca do transtorno é fundamental para combater o preconceito e, assim, ampliar a compreensão sobre os desafios que as famílias - e principalmente as mães - enfrentam.
Hoje em dia, várias leis tentam assegurar os direitos de pessoas autistas. A Lei Berenice Piana (Lei N.º 12.764), por exemplo, institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Entre algumas de suas diretrizes, estão o estímulo à inserção da população autista no mercado de trabalho e o oferecimento, por parte do Estado, de diagnóstico precoce e tratamento adequado.
Já a Lei 13.370/2016 incorporou os princípios da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e modificou o artigo 98 da Lei 8.112/90, estabelecendo, assim, a possibilidade de redução da carga horária diária em decorrência da necessidade do menor, sem prejuízo dos vencimentos. Com isso, pais de pessoas autistas podem ter até 25% da carga horária de trabalho reduzida para acompanhar os filhos nas atividades diárias.
Mas, independentemente da legislação e das políticas públicas, Tânia diz que o apoio psicológico voltado especificamente às mães é fundamental — e que ele não se limita ao acompanhamento terapêutico. “A gente precisa ter amigas, ter uma atividade, fazer uma caminhadinha (...), descansar, ter o tempo de fazer uma unha, assistir um filme. Nossa, isso muda a vida da gente, tirar esse foco. Precisamos ser vistas como humanas também, não só como mães”, afirma.
“O prognóstico é completamente diferente em crianças que as mães puderam receber orientações e que tiveram suporte, seja da família, dos parceiros ou dos profissionais”, diz Mayra Gaiato, que ressalta a importância da participação de ambos os responsáveis pela criança no tratamento.
“Nunca vi um caso de sucesso sem que os pais estivessem absolutamente envolvidos, acompanhando tudo o que é feito nas terapias e dando continuidade em casa. (...) E quando eu chamo de casos de sucesso, não falo só de casos de crianças que reduziram atrasos causados pelo autismo. Eu também falo de casos que tiveram pouca evolução comportamental (...) mas que eu chamo de sucesso as crianças e as pessoas que ficaram mais felizes a partir do momento quando souberam quando conduzir", conclui a neurocientista.
*Nomes fictícios.