No Brasil, milhões de pessoas convivem diariamente com transtornos como ansiedade e depressão
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No Brasil, milhões de pessoas convivem diariamente com transtornos como ansiedade e depressão

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 9,3% dos brasileiros sofrem de ansiedade . Para depressão, o índice chega a 15,5%, de acordo com o Ministério da Saúde . Além das causas sociais e econômicas, os dados mostram outro desafio: a dificuldade em encontrar o tratamento adequado. Segundo uma pesquisa Covitel, 86% dos brasileiros que usam psicotrópicos já precisaram trocar de medicação pelo menos uma vez.

Em entrevista ao iG, o psiquiatra Guido Boabaid explica que um dos principais motivos para isso é a cultura da "tentativa e erro", que ainda domina o modelo tradicional de prescrição.

"Esse modelo custa caro - não só em tempo, mas também em saúde e esperança. Vejo pacientes enfrentando ciclos prolongados de sofrimento, incluindo insônia, perda de apetite, crises emocionais, efeitos adversos severos e, em alguns casos, risco de suicídio", afirma.

Segundo ele, esse padrão persiste por vários fatores, como a falta de cultura na psiquiatria em trabalhar com exames laboratoriais.

"O psiquiatra é formado essencialmente como um clínico. Ao contrário de outras especialidades médicas, como a oncologia ou a cardiologia, que já usam exames para guiar decisões, a psiquiatria nunca teve esse recurso disponível - até a chegada dos testes farmacogenéticos", explica.

Para o especialista, muitos médicos não estão familiarizados com esse tipo de exame. "Alguns evitam oferecê-lo por acharem que o paciente pode considerá-lo caro. Outros, simplesmente, não sabem que ele existe ou não foram treinados para usá-lo", diz.

De forma resumida, esses testes genéticos ajudam a entender o funcionamento do corpo ao nível molecular. Eles identificam prováveis variações na genética que podem desenvolver doenças até a reação a medicamentos.

"O que conseguimos entender é que, tanto em nossa prática clínica quanto nos estudos científicos, os pacientes que têm o seu tratamento guiado pelo teste farmacogenético, têm maiores chances de total dos sintomas, muito mais rápido, com menores chances de efeitos colaterais", explica.

"Os estudos demonstram que pacientes guiados com o teste farmacogenético já na oitava semana podem apresentar taxas de remissão 50% maiores do que pacientes em tratamento pelo método tradicional e 30% menos efeitos colaterais, 58% menos de chance de internar, menores taxas de abandono de tratamento", acrescenta.

Tipos de testes genéticos

Dr. Guido explica que são três principais tipos de testes: o primeiro deles é o preditivo, que investiga a maior chance de desenvolver determinadas doenças, como o teste de câncer de mama.

Já os testes genéticos diagnósticos analisam os genes e suas variantes relacionados a característica de cada doença e servem para fechar um laudo, como algumas doenças cardíacas, por exemplo.

E há também os testes farmacogenéticos, que analisam os genes que podem mudar o comportamento dos medicamentos, ao aumentar ou diminuir sua resposta.

"Os testes genéticos auxiliam na individualização da terapia, ou seja, como cada um vai responder a determinado tratamento, como se pudéssemos prever um resultado que ainda não se concretizou a partir do nosso DNA", explica o geneticista Ney Pereira ao iG.

Como esses testes atuam?

Os testes farmacogenéticos ajudam justamente nessa questão, de entender quais medicamentos podem ter melhor resposta do organismo - e isso se estende aos remédios psiquiátricos.

"Boa parte dos medicamentos é metabolizada por enzimas presentes no fígado, e muitas delas fazem parte da família chamada citocromo P450. Os antidepressivos inibidores da recaptação de serotonina, como sertralina, citalopram e escitalopram, são metabolizados por uma dessas enzimas, a CYP2C19. Essa enzima é codificada por um gene com o mesmo nome, e é possível analisar esse gene para saber se o paciente tem alguma variante que altera sua função" , explica o especialista.

O psiquiatra explica que uma mutação no CYP2C19 pode ser um "metabolizador pobre", ou seja, que quebra o corpo mais lentamente. Nesse caso, ao tomar uma dose padrão, como 10 mg de escitalopram, o nível do medicamento no sangue pode ser até seis vezes maior do que o esperado, o que aumenta muito a chance de efeitos colaterais logo no início do tratamento.

"É como se o paciente estivesse começando com 30 a 60 mg, sem saber. O resultado pode ser o abandono precoce da medicação", explica o médico.

Ney Pereira acrescenta que há outras variáveis que podem influenciar os resultados dos testes e, consequentemente, a ação dos medicamentos, como os hábitos do paciente.

"Diversos fatores podem influenciar na resposta de um medicamento, levando em conta o perfil individual e o ambiente em que se insere. Fatores ambientais como tabagismo, uso de álcool, além do estresse e fatores sociais são inerentes ao código genético. Além disso, fatores epigenéticos e clínicos, como comorbidades médicas podem influenciar nestas respostas", diz.

Testes são válidos, mas não podem ser o único caminho

Os testes farmacogenéticos de fato podem ajudar várias áreas na medicina, como a psiquiatria e a oncologia. No entanto, o geneticista Ney Pereira aponta que somente eles não são responsáveis por cravar a melhor conduta terapêutica, que também deve ser alinhada ao acompanhamento clínico e à análise genômica.

"Embora os testes genéticos possam ajudar na escolha inicial ou ajuste de dose, eles não garantem a seleção do fármaco ideal. O risco é interpretar esses testes como determinísticos, ignorando a natureza multifatorial da resposta ao tratamento. Entretanto, o direcionamento individualizado que é possível a partir dos testes genéticos, pode minimizar erros clínicos e evitar que pacientes tenham que testar medicamentos por tentativa até se encontrar o ideal", diz o geneticista.

Ele salienta que o papel do geneticista ou profissional especializado em biologia molecular é muito importante para a interpretação dos resultados. "Sem acompanhamento profissional, os testes podem ser mal interpretados" , alerta.

E no Brasil?

O geneticista Ney Pereira Carneiro destaca que os testes farmacogenéticos já são comuns em vários países. Nesses locais, as empresas privadas usam informações genômicas para personalizar os tratamentos. Porém, no Brasil, essa tecnologia tem desafios financeiros e de alcance.

"Os custos elevados dificultam a implementação desses testes no sistema público de saúde. Além disso, nossa população é muito heterogênea, e os dados genéticos disponíveis hoje vêm principalmente de grupos homogêneos, diferentes da nossa realidade", explica. Ele ressalta a necessidade de mais investimentos em pesquisas no país para compreender melhor a sua diversidade genética.

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