A Segunda Guerra Mundial terminou em 1945 deixando milhões de feridos, não apenas no corpo, mas também na mente. Nesta terça-feira, 2 de setembro, completam-se 80 anos da rendição oficial do Japão, que marcou o fim do conflito. Muitos soldados voltaram para casa com sintomas como ansiedade, insônia, pesadelos, surtos de raiva ou tristeza profunda . Hoje chamamos esses quadros de transtornos mentais, mas, naquela época, a medicina não tinha uma forma clara de classificá-los.
Diante dessa situação, o Departamento de Guerra dos Estados Unidos lançou, em 1946, um guia para ajudar médicos a entender e tratar os veteranos. A iniciativa evidenciou a necessidade de criar um sistema organizado para nomear e compreender as doenças da mente. Poucos anos depois, em 1952, surgiu o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) .
Como começou a mudança
Segundo a tese “ Mudanças nos conceitos de ansiedade nos séculos XIX e XX: Da neurose de angústia ao DSM-IV ”, de Milena de Barros Viana (UNIFESP), o desenvolvimento do tratamento de veteranos da Segunda Guerra combinou a insatisfação da psiquiatria norte-americana com os modelos psicodinâmico e psicossocial, que careciam de categorias nosológicas — agrupamentos de sintomas e características que ajudassem a definir doenças e facilitar o diagnóstico.
Na época, a psiquiatria nos Estados Unidos era influenciada pela psicanálise, que via a saúde mental como um estado fluido: mesmo um indivíduo “normal” poderia adoecer se exposto a traumas severos.
Após a publicação da sétima edição do DSM, surgiram novas críticas, especialmente com a oitava versão, lançada em 1968, que trouxe subdivisões importantes e mudanças de paradigma na classificação das doenças.
Nos anos 1960, a psiquiatria enfrentava questionamentos internos e externos: pesquisas pouco convincentes, descontentamento dos psiquiatras da vertente biológica, movimento de antipsiquiatria defendendo explicações psicossociais para as doenças mentais e cortes de verbas para pesquisa, que caíram cerca de 5% ao ano entre 1965 e 1972.
Outro ponto importante foi a demanda para a exclusão do homossexualismo do manual, atendida antes da publicação da nova versão, em votação da APA. Além disso, avanços tecnológicos, como o desenvolvimento de psicofármacos, começaram a influenciar tratamentos e diagnósticos.
O primeiro DSM listava 106 condições, chamadas de “reações” — respostas da personalidade a situações traumáticas ou de estresse. Apesar da linguagem diferente, o objetivo era o mesmo: ajudar médicos a identificar e cuidar de pessoas com problemas emocionais e psicológicos.
DSM ao longo do tempo: das primeiras edições às atuais
DSM I (1952): transtorno bipolar e depressão unipolar eram vistos como uma única condição, associada a problemas de metabolismo, crescimento, nutrição ou funções biológicas do corpo.
DSM II (1968): alinhado ao CID-8 e com forte influência psicanalítica. Mudanças importantes: psicoses passaram a ser chamadas de neuroses; “reações esquizofrênicas” viraram esquizofrenia; e a depressão foi dividida em melancólica e não melancólica.
DSM III (1980): revolucionário, trouxe descrições clínicas precisas, diagnósticos diferenciais e sistema multi-axial, marcando uma abordagem mais psiquiátrica. Novos termos incluídos: depressão maior, autismo infantil, transtorno de personalidade esquizoide e transtorno de déficit de atenção. Em 1987, o DSM III-R aproximou a classificação do futuro CID-10, renomeou o transtorno de déficit de atenção para TDAH e os transtornos afetivos para transtornos de humor, embora ansiedade e depressão ainda fossem tratados como uma mesma condição.
DSM IV (1994): trouxe descrições mais detalhadas, especialmente do transtorno bipolar, e introduziu a síndrome de Asperger. Allen Frances, líder do projeto, considerava o manual excessivamente descritivo. O DSM-IV–TR atualizou a base de dados, incluiu novos diagnósticos e critérios mais claros, embora muitos psiquiatras ainda sentissem que seus pacientes não se encaixavam totalmente nos manuais.
DSM-5 (2013): rompeu com a forma de analisar a saúde mental de uma pessoa em diversas camadas, adotando uma abordagem mais global do paciente. Introduziu a categoria de transtornos do neurodesenvolvimento, revisou a esquizofrenia abolindo seus subtipos e critérios subjetivos, reorganizou transtornos de ansiedade e incluiu temas como transtornos alimentares, disfunções sexuais e transtornos de gênero, que geraram debates na comunidade científica.
Em 2025, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) celebra marcos importantes: o DSM-I completa 73 anos desde sua publicação em 1952, enquanto o DSM-5 completa 12 anos, lançado em 2013. Hoje, o manual continua sendo o principal recurso diagnóstico para transtornos mentais, oferecendo critérios uniformes que auxiliam médicos e profissionais da saúde a compreender e tratar pacientes de maneira consistente, refletindo a transformação da psiquiatria desde os tempos pós-Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje.