Uma pesquisa que ouviu médicos, profissionais de enfermagem e agentes comunitários mostra que relatos de assédio moral no contexto da pandemia de covid-19 foram mais comuns entre mulheres negras, que também declararam menos acesso a testes, treinamento e equipamentos.
O estudo buscou entender o impacto da pandemia nos profissionais de saúde e foi realizado pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/Eaesp), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Rede Covid-19 Humanidades.
O grupo responsável pelo trabalho lembra que, como as entrevistas foram respondidas por voluntários por meio de pesquisa online, não é possível fazer generalizações para todo o universo de profissionais de saúde. Ao todo, foram levadas em consideração as respostas de 1.264 profissionais de saúde de todas as unidades da Federação, que identificaram seu gênero e raça ao responder ao questionário, entre 15 de setembro e 15 de outubro.
Apesar de as conclusões serem restritas ao grupo de entrevistados, uma das coordenadoras do estudo, a pesquisadora Gabriela Lotta, disse que os dados evidenciam que alguns profissionais de saúde estão mais sujeitos a condições ruins de trabalho que outros. "E isso reforça desigualdades estruturais vinculadas à raça, ao gênero e à renda, já que as mulheres negras em geral estão em profissões menos valorizadas, como de agentes comunitárias de saúde", afirma Gabriela em texto divulgado pela Agência Bori.
Assédio moralO percentual de mulheres negras que relataram, durante as entrevistas, que sofreram assédio moral chegou a 38%. Cerca de uma em cada quatro (27%) afirmou que o assédio começou ou aumentou durante a pandemia. O cenário é bem diferente para os homens brancos: três em cada quatro (75%) afirmam não sofrer assédio moral no trabalho e 16% dizem que o assédio começou ou piorou na pandemia.
A pesquisa também fez uma análise qualitativa de testemunhos desses profissionais de saúde e constatou que supervisores são os responsáveis pelas agressões na maior parte dos casos, mas também há relatos de assédio por parte das famílias dos pacientes e das esferas governamentais. "Casos de humilhação, cobrança excessiva, ameaças e constrangimento de disponibilização de equipamentos de proteção individual (EPI) e capacitação formam as principais narrativas compartilhadas", diz o estudo.
Condições de trabalhoEntre os entrevistados, as profissionais negras são as que relatam menor acesso a equipamentos de forma contínua (57,3%), treinamento (44%) e testagem de forma contínua (26%). Os homens brancos e as mulheres brancas declararam, com mais frequência, acesso aos equipamentos, com 71,6% e 69,6%, respectivamente; aos treinamentos, com 58,7% e 50,8%; e aos testes, 29% e 31,8%. Para os homens negros, os três percentuais são 56,7%, 52,6% e 34%.
As mulheres negras também responderam com menos frequência que receberam orientações das chefias, com um percentual de 65%, contra 74% dos homens brancos, 70% das mulheres brancas e 68% dos homens negros. No caso do suporte dos supervisores, a diferença é ainda maior: enquanto as mulheres negras responderam positivamente em 54% dos casos, os demais grupos superam os 60%, chegando a 69% no caso dos homens brancos.
Saúde mental
Para 69% dos homens, tanto negros quanto brancos, a pandemia causou impacto na saúde mental. Para as mulheres, o percentual chega a 83%. Apesar disso, o grupo de entrevistados que disse ter recebido apoio à saúde mental não chegou a 30% entre nenhum dos grupos pesquisados.
Nessa pergunta, os homens negros declararam ter recebido suporte em apenas 23% dos casos, enquanto os outros grupos apresentaram resultado similar, de 29%.A emoção negativa mais sentida por esses profissionais, no contato com os usuários dos serviços de saúde, foi o medo, relatado por 49% dos homens, 51% das mulheres brancas e 54% das mulheres negras.
Já a emoção positiva mais expressada na pesquisa foi a empatia, presente nos relatos de 63% das mulheres brancas, 56% das mulheres negras, 59% dos homens brancos e 52% dos homens negros.Para 79% dos homens negros, essas emoções foram causadas pelo risco à saúde, percentual que fica ligeiramente acima dos outros grupos, próximos dos 75%. Por outro lado, as mulheres declararam ter sido mais afetadas pelo risco a seus familiares.
A pesquisa mostra ainda que a emoção pessoal mais frequente dos profissionais foi estresse e ansiedade, com cerca de 75% para todos os grupos. Os homens negros declararam com mais frequência o cansaço, em 72% dos casos, enquanto as mulheres negras tiveram relatos mais frequentes de tristeza, em 53% dos casos.
Em relação a emoções positivas, a pesquisa mostra que os entrevistados homens sentem-se mais esperançosos que as mulheres, e homens e mulheres brancas relatam ter sentido mais reconhecimento (17% e 15%) que homens negros e mulheres negras (11% e 12%).Para todos os grupos, as estratégias mais frequentes para se sentir motivado e seguro foram ter humor e empatia com os colegas de trabalho, estar perto da família e se manter em isolamento social quando não está trabalhando.
Apesar disso, 82% dos entrevistados disseram ter expectativas negativas para os próximos meses.Para enfrentar os problemas relatados nas entrevistas, o grupo responsável pelo estudo recomenda a geração e divulgação de dados com desagregação de informações por gênero e raça, para a melhor compreensão dos impactos da pandemia.
Além disso, é indicada a ampliação das políticas de suporte emocional e psicológico aos profissionais de saúde e a criação de mecanismos de denúncia e enfrentamento do assédio moral contra esses trabalhadores.Outro ponto destacado como recomendação é a presença de mulheres na formação dos planos de ação e tomada de decisões. "Os planos de ação e as políticas de contenção da pandemia devem estimular e apoiar organizações e ações das lideranças comunitárias femininas", diz o estudo.