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A Itália se tornou o segundo país europeu - depois do Reino Unido - a ultrapassar 50 mil mortes por coronavírus.
Foto: BBC
A Itália se tornou o segundo país europeu - depois do Reino Unido - a ultrapassar 50 mil mortes por coronavírus.

"Até meia hora atrás, 12 dos nossos 18 leitos de terapia intensiva estavam ocupados", explica o médico Demetrio Labate, enquanto fechava seu uniforme de proteção. "Mas agora são 11. Acabamos de perder outro paciente, ele tinha 82 anos."

O médico da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) entrega à reportagem da BBC um par de luvas cirúrgicas, verifica se roupa de proteção não deixou nenhuma parte do corpo exposta, e com isso o seguimos até a sala de tratamento contra o coronavírus do Grande Ospedale Metropolitano, o maior hospital da Calábria.

No início de novembro, esta região do sul da Itália foi classificada como uma "zona vermelha", diante dos estragos causados pelo vírus na área.

"A segunda onda (de infecções por coronavírus) nos atingiu com muito mais força do que a primeira", explica Labate, andando entre os leitos dos pacientes em ventilação assistida.

"Estamos com escassez de pessoal e um número limitado de profissionais. Estamos fazendo turnos adicionais."

Um dos pacientes está consciente, usando capacete de ventilação.
Ele faz um breve aceno com a mão: um pequeno gesto para levantar o ânimo dos médicos exaustos. "Estamos lutando para não entrar em colapso", diz Iole Fantozzi, diretora do hospital.

"Essa onda era previsível porque nos sentimos mais livres durante o verão, quando o número de casos estava muito baixo e as pessoas entravam e saíam da Calábria."

Iole Fantozzi é a diretora do maior hospital da Calábria
Foto: BBC
Iole Fantozzi é a diretora do maior hospital da Calábria

A Itália foi o primeiro país do Ocidente a ser esmagado pela pandemia de covid-19, e por algum tempo foi seu epicentro global.

Com o oitavo maior número de casos no mundo, a Itália tornou-se o segundo país da Europa a ultrapassar 50 mil mortes pela doença. O primeiro foi o Reino Unido.

Em julho, quando as infecções diárias caíram para pouco mais de 100, criou-se uma falsa sensação de segurança entre a população e governantes. Foi quando a Itália abriu suas portas para turistas, e as restrições à circulação foram amenizadas.

Agora, o país parece estar pagando o preço dessa estratégia: luta contra uma segunda onda de infecções, e mais uma vez seu número de mortes está entre os mais altos da Europa.

Mas, ao contrário de março, quando a pandemia estava centrada na rica região norte da Lombardia, agora, a segunda onda também está atingindo o empobrecido sul do país.

A Calábria é a região mais pobre da Itália e uma das mais pobres da Europa Ocidental. E, embora sua taxa de infecção e números de internações na UTI sejam menores do que no norte, o frágil sistema de saúde da região está entrando em colapso, razão pela qual o área foi colocada na categoria de maior risco.

A Calábria é a região mais pobre da Itália
Foto:BBC
A Calábria é a região mais pobre da Itália

Por que o sul da Itália está sofrendo

O sistema de saúde da Calábria foi castigado por décadas de má gestão política e saques praticados pela máfia, a 'Ndrangheta, que se infiltrou no setor.

Gangues de criminosos confiscaram recursos e acumularam dívidas enormes, levando ao fechamento de 18 dos hospitais públicos da região, além de enormes cortes no número de leitos e de funcionários.

Recentemente, um importante político local foi preso, acusado de lavagem de dinheiro por meio de farmácias controladas pela 'Ndrangheta em troca do apoio da máfia. A corrupção exacerbou uma série de fracassos políticos.

Santo Gioffrè, chefe de uma autoridade local de saúde, expôs uma fraude há cinco anos, mas diz que foi silenciado pelas autoridades da região
Foto: BBC
Santo Gioffrè, chefe de uma autoridade local de saúde, expôs uma fraude há cinco anos, mas diz que foi silenciado pelas autoridades da região

Dois comissários de saúde da região também foram demitidos em meses recentes. Um deles declarou que máscaras de proteção eram inúteis e que a única forma de contrair o coronavírus era beijando uma pessoa infectada por 15 minutos.

Duas pessoas convidadas pelo governo para assumir o cargo rejeitaram a posição.

"A Calábria ficou sem hospitais adequados para atender até mesmo aos requisitos mínimos do coronavírus, então todo o sistema entrou em colapso", disse Santo Gioffrè, um ginecologista que, como chefe de uma autoridade de saúde local, expôs fraudes no sistema há cinco anos. Ele diz, porém, que foi silenciado pelas autoridades.

A emergência da covid-19 está paralisando a economia da Calábria, pois a classificação de "zona vermelha" fechou negócios pela segunda vez neste ano.

'Tanto 'Ndrangheta quanto Covid são pandemias', diz o chef Filippo Cogliandro
Foto: BBC
'Tanto 'Ndrangheta quanto Covid são pandemias', diz o chef Filippo Cogliandro

Máfia e cobiça, uma pandemia dupla

No restaurante "L'A Gourmet" de Filippo Cogliandro, as cadeiras estão empilhadas em mesas vazias sob lustres de vidro, e a cozinha está silenciosa.
"Um restaurante é como uma orquestra", ele diz, descrevendo os sons dos cozinheiros trabalhando e o barulho dos pratos.

"E é muito difícil vê-lo mudo", acrescenta, com lágrimas nos olhos.
Para o chef premiado, a situação é semelhante à de 12 anos atrás, quando ele se recusou a pagar dinheiro em uma extorsão da 'Ndrangheta — e ameaças da máfia afastaram seus clientes.

Mas então ele conseguiu reconstruir seu caminho. E espera fazer isso de novo, depois da pandemia. "Tanto 'Ndrangheta quanto a covid-19 são pandemias", diz ele, enquanto o sol da tarde brilha pelas janelas do elegante palácio centenário que abriga seu restaurante.

"Vamos destruir o vírus com uma vacina, mas a luta contra a máfia vai demorar mais", acrescenta.

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