Para se proteger contra o ataque do sistema de defesa do organismo infectado, o coronavírus pode se agarrar a fragmentos da hemoglobina, a molécula que transporta oxigênio no sangue, mostra uma nova pesquisa. A descoberta, descrita em estudo de cientistas do Reino Unido nesta quinta-feira (22), pode abrir novas estratégias farmacológicas contra o patógeno.
Em artigo publicado na revista Science, pesquisadores do Instituto Francis Crick de Londres e outros centros de pesquisa mostraram que uma parte do vírus é capaz de agarrar a biliverdina, um pigmento esverdeado que é subproduto da quebra da hemoglobina quando o organismo a fragmenta para reciclá-la. Uma vez grudado nessa molécula, o vírus impede que algumas classes anticorpos, estruturas de defesa do sistema imune, se agarrem a ele.
A biliverdina é conhecida o pigmento sanguíneo
que dá aparência esverdeada a hematomas, quando a cor roxa típica desses ferimentos começa a esmaecer. Com ela é uma molécula relativamente abundante no sangue, não é difícil o vírus encontrá-la e usá-la para se proteger. O intervalo de vida da biliverdina no organismo é curto, pois ela se decompõe em bilirrubina, pigmento mais amarelado.
Um aspecto importante da descoberta, liderada pela cientista Anachiara Rosa, é que caso encontrarem uma maneira de impedir esse processo, o sistema imune deve ganhar eficácia.
Mais de um ano após a pandemia, ainda não existem medicamentos virais criados especificamente contra o coronavírus, e algumas vacinas tem eficácia relativamente baixa. Uma dificuldade em fazer as pesquisas avançarem é justamente a falta de alvos disponíveis para tentar atingir o patógeno. Quase todo o desenvolvimento de vacinas se concentra em um único pedaço da proteína spike (a projeção do vírus em forma de espinho), chamada de "domínio de ligação do receptor" (RBD, sigla em inglês). Algumas drogas experimentais também miram essa estrutura.
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Essa pequena parte da proteína spike pode ser considerada a "chave" que o vírus usa para se ligar a células humanas, que possuem "fechaduras" (proteínas de superfície celular) que concedem entrada ao patógeno. Como o RBD tem de ficar desprotegido para o vírus poder agir, é um alvo preferencial de cientistas que buscam criar fármacos específicos que o reconheçam e o ataquem.
Uma dificuldade que pesquisadores estão encontrando, porém, é que alguns anticorpos e fármacos desenhados especialmente para atacar essa região às vezes não funcionam bem, e a razão disso não tem sido bem compreendida.
Conhecimento e aplicação
Um dos insights levantados pela nova pesquisa é que, quando o vírus está colado na biliverdina, alguns anticorpos estimulados pelas vacinas provavelmente não conseguem agarrá-lo direito, porque precisam atacar a parte da spike bloqueada pela biliverdina. Essa molécula se conecta em um outro "domínio" da spike, encobrindo-o, e este não estaria sendo reconhecido pelo sistema imune. Se o vírus não têm à disposição moléculas de biliverdina para se escudar, porém, uma gama maior de tipos de anticorpos conseguem agarrá-lo e neutralizá-lo.
A descoberta dos cientistas no Reino Unido levou tempo porque exigiu instrumentos sofisticados de microscopia e cristalografia para fazer um mapeamento da spike em minúsculos detalhes. No estudo da Science, os cientistas apontam com precisão a cavidade da molécula onde a biliverdina se liga.
Além de oferecer evidência da descoberta analisando a estrutura da spike, os pesquisadores demonstraram seu efeito em uma prova experimental. Ao infectar amostras de tecido humano em laboratório com o vírus, eles perceberam que o patógeno combatia melhor as células do sistema imune caso os cientistas aplicassem biliverdina na região.
Apesar de mostrar um mecanismo de evasão ainda não conhecido do vírus, o estudo publicado na Science ainda não aponta uma estratégia específica de explorar esse conhecimento para tratamento. Se algum tipo de terapia conseguir limitar o acesso do vírus à biliverdina no organismo, por exemplo, talvez o resultado seja uma eficácia maior do sistema imune. No estudo, Rosa e colegas sugerem a criação de vacinas que tenham como antígenos versões da spike desprovidas da área que interage com a biliverdina, assim os anticorpos derivados delas não dependeriam disso na hora de neutralizar o vírus.