Em pronunciamento neste domingo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou o relaxamento de uma série de medidas impostas no início da pandemia para conter o avanço da Covid-19 no país e decretou o fim da Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN), instituída no Brasil em março de 2020.
A medida é defendida pelo presidente Jair Bolsonaro como fim da pandemia e uma transição no país para um estágio de endemia, ainda que a classificação não seja de competência do governo federal, e sim da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Especialistas ouvidos pelo GLOBO recebem com receio a decisão do ministério. Eles lembram que a pandemia ainda não está controlada em diversas regiões do mundo, que vivem um aumento de casos, e destacam que o fim do decreto pode dificultar a adoção de novas medidas caso o cenário epidemiológico piore no país, além de comprometer a utilização de recursos ainda em andamento.
— Quando há a retirada do decreto de emergência de saúde pública no país, algumas questões operacionais, inclusive de compras, de licitações, tudo isso sofre um impacto importante, o que pode afetar estados e municípios em relação ao seu planejamento para o combate à pandemia numa situação de emergência — explica a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Para o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a decisão do governo pode comprometer medidas de estados e municípios que ainda estejam utilizando recursos de maneira emergencial liberados com auxílio do decreto.
— (A suspensão do) decreto não muda a atitude em relação às medidas restritivas ou de controle da doença do governo federal porque ele nunca impôs nem recomendou nenhuma. No entanto, pode impactar em ações específicas de estados e municípios que estão conduzindo essas ações com esses recursos — afirma Croda.
Ethel defende que a decisão deveria ser tomada apenas no momento em que a OMS decretasse o fim da emergência sanitária em âmbito mundial, uma vez que o cenário fora de controle em outros lugares do planeta pode levar a uma piora na situação sanitária do Brasil.
— Não tem como saber ainda se a pandemia está virando uma endemia ou se estamos num período entre uma onda ou outra. Dependemos do que está acontecendo em todos os outros locais do mundo. Enquanto estivermos sobre o decreto de emergência global da OMS, acredito que seria muito desejável que nós mantivéssemos também o nosso decreto em nível nacional — pontua a especialista.
No último dia 13, a Organização Mundial da Saúde decidiu que a pandemia de Covid-19 continua a ser uma "Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional", o que na prática mantém o status da doença como pandêmica. A orientação foi do parecer do comitê de emergências da entidade, que ressaltou que o vírus continua a ter uma evolução "imprevisível, agravada pela sua ampla circulação e intensa transmissão”.
— Isso é fundamental para a gente compreender que ainda estamos num estado de alerta em relação ao que está acontecendo no restante do mundo, porque quando falamos de pandemia quer dizer que dependemos da situação de outros lugares, ainda estamos num momento que exige cuidado — defende Ethel.
Melhora do cenário graças à vacinação
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Os especialistas são unânimes em relação ao papel da vacinação na melhora da situação sanitária no país. Eles afirmam que momentos como o que o país vive agora – com números mais baixos de casos e óbitos pela doença – podem de fato significar que a Covid-19 está entrando num estágio endêmico, mas Ethel explica que o patamar que estabelece o que é uma endemia nesse caso ainda não é bem estabelecido.
— O problema é que a gente não tem consenso internacional ainda do que seriam esses números menores, qual patamar seria considerado normal. Nós estamos muito melhores, mas ainda temos uma média móvel de mais de 100 mortes por dia. Então a gente precisa que o país esteja preparado para, caso seja necessário, a gente consiga implementar medidas de forma rápida, como ampliação de leitos, compra de medicamentos — afirma a epidemiologista.
Croda ressalta que, entre o pico da variante Delta e da Ômicron no Brasil, no final do ano passado, o país viveu um período chamado de interepidêmico – com números mais baixos como agora – que precedeu uma nova onda. Para ele, não tem como saber ainda se esse seria também o caso do momento atual, ou se realmente o país caminha para uma um cenário favorável duradouro.
— O que mais me preocupa é o surgimento de novas variantes. O cenário epidemiológico atual permite eventualmente a suspensão do decreto emergencial, mas a gente não sabe o que pode acontecer no futuro, principalmente em relação ao surgimento de novas variantes que escapem ao efeito das vacinas. Mas a gente acredita que o risco seja cada vez menor — afirma o infectologista.
Afinal, quem pode decretar o fim da pandemia?
O status oficial de pandemia foi definido pela OMS, órgão que tem autoridade para decisões em âmbito mundial, quando a epidemia da Covid-19 chegou a todo o planeta, no dia 11 de março de 2020. No Brasil, o governo federal já havia declarado, no dia 4 de março daquele ano, estado de emergência sanitária. Na prática, a determinação de âmbito nacional abriu portas para liberação de recursos no combate à doença. Desde então, não houve alteração pela OMS, e a medida do governo brasileiro chegou ao fim neste domingo.
Porém, não é competência do Brasil decretar o “fim da pandemia”, uma vez que o status é estabelecido pela OMS, sendo da alçada do governo apenas a decisão pelo encerramento do decreto nacional. Portanto, embora defendido por Bolsonaro, o rebaixamento da pandemia para endemia no Brasil por meio de decisão do ministério não é uma possibilidade.
Já a OMS não tem planos para alterar o status de pandemia agora. Embora o diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus tenha dito, no início do ano, que o mundo tem as “ferramentas para acabar com esta calamidade” em 2022, neste mês a organização reforçou que ainda chegou o momento.
Para decretar o fim da pandemia, uma das estratégias da OMS é vacinar 70% da população de todos os países do mundo até meados de 2022. No entanto, embora países da América do Norte, do Sul e da Europa, em sua maioria, tenham alcançado a meta, grande parte das nações africanas ainda estão longe do percentual. Como um todo, o continente imunizou apenas 16% de sua população com as duas doses.