No início do outono, Oscar, de 63 anos, estava sentado em um dos poucos bancos vagos da Unidade Básica de Saúde de Humaitá, no bairro do Bixiga, na região central de São Paulo. Curvado, contou à reportagem do iG que sua espera era mais longa que a fila imensa do dia. Seu Oscar perdeu a conta dos anos em que é enviado de uma unidade do SUS a outra, cruzando a cidade em uma novela de exames perdidos e de prontuários não localizados pelo Sistema Único de Saúde.
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O SUS paulistano, assim como outras prefeituras do País, destinou parte significativa de recursos a um programa de informatização de dados de pacientes, o e-SUS AB (atenção básica), que é uma plataforma usada pelos gestores de unidades básicas de saúde de todo o País e que permite ao Ministério da Saúde reunir informações sobre os atendimentos realizados no Sistema Único de Saúde.
Em todos os postos de saúde da capital visitados pela reportagem, onde o Ministério da Saúde informa a implantação do sistema, funcionários administrativos e médicos afirmaram nunca terem ouvido falar em automatização ou prontuário eletrônico. Na maior partes dos postos de saúde, os métodos de registro da atividade da população é improvisado. Em muitos, o recurso mais confiável ainda são as pastas de papel.
O governo federal destinou, há cinco anos, R$ 40 milhões à Universidade Federal de Santa Catarina para o desenvolvimento do e-SUS AB. Mas o software, que ganhou sem concorrência a atuação nas UBS de todo o país, foi comercializado por uma empresa, a Tríplice Consultoria, que pertence a José Carlos Zanini, ex-professor da universidade catarinense. A Tríplice é a dona da propriedade intelectual do programa financiado pelo governo. E conseguiu, ainda durante o governo de Dilma Rousseff, um contrato de licenciamento sem licitação, sob o argumento de que havia “impossibilidade de competição”.
Foram pagos à Tríplice Consultoria R$ 20 milhões, em três parcelas, entre janeiro e julho de 2013. No ano seguinte, a Secretaria de Controle Externo de Santa Catarina (Secex-SC) do Tribunal de Contas da União (TCU) questionou esse modelo de contratação.
A auditora federal Fernanda Debiasi, que atuou no processo, questionou nessa época o valor pago à Tríplice e o fato de o direito de uso do programa ter sido concedido à universidade, e não ao Ministério da Saúde. Debiasi pediu parecer técnico da Secretaria de Fiscalização de Tecnologia de Informação do tribunal, que confirmou as suspeitas levantadas pela Secex.
Em novembro de 2015, os ministros da Primeira Câmara do TCU julgaram que a contratação foi irregular e se deu por “valor não razoável e sem demonstração da vantajosidade de sua contratação frente aos demais produtos oferecidos no mercado, inclusive outros frameworks públicos e gratuitos, afrontando os princípios constitucionais da isonomia e da eficiência, bem como os princípios da legalidade e da impessoalidade”.
Esse entendimento foi acompanhado pela unanimidade dos ministros, que pediram a devolução do valor recebido pela Tríplice, o que, corrigidos até agosto de 2015, chegaria a R$ 23,6 milhões. A empresa recorreu duas vezes da decisão, mas as reclamações foram rejeitadas pelo TCU e o relator, ministro Bruno Dantas, classificou os recursos como “meramente protelatórios”.
O processo foi convertido em uma Tomada de Contas Especial e ainda aguarda julgamento no plenário do TCU. Nessa etapa do processo, as secretarias técnicas do tribunal colhem as informações que irão municiar os ministros a decidirem se efetivamente será cobrada a devolução de valores e se haverá outro tipo de punição aos envolvidos com as supostas irregularidades.
Seu Oscar não sabia disso. Mas nessa época fez ressonâncias e raio-x a pedido de um médico no “SUS do Butantã”. Depois, exames gerais na Santa Casa. Por fim, quando foi encaminhado para o posto de saúde na Sé, soube que teria de fazer tudo novamente, já que os médicos de lá não tinham seu prontuário. “Aí desisti... tinha gasto tempo demais. Já fui espetado por todo tipo de agulhas e radiografado o suficiente”.
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Coleta de vários lados
As informações levantadas durante o processo contra a Tríplice no TCU embasaram operação realizada no fim de 2017 pela Polícia Federal e Controladoria-Geral da União (CGU). Batizada de Operação Torre de Marfim, a ofensiva mirou contratos irregulares desenvolvidos por fundações de apoio da UFSC e teve como um dos alvos José Carlos Zanini. A sede da Tríplice, em Florianópolis, foi vasculhada por agentes da PF em cumprimento de mandados de busca e apreensão.
“Chamou atenção dos investigadores contrato em que servidor aposentado da universidade atuou como gestor de projetos e teve a própria empresa contratada por cerca de 20 milhões de reais, sem licitação”, destacou a CGU em nota divulgada à época. “Análises patrimoniais preliminares indicam que os servidores investigados apresentam patrimônio e movimentação financeira com indícios de incompatibilidade com suas receitas legais, sugerindo proveito ilícito das verbas que administram”, completou o TCU.
Fontes ouvidas pela reportagem em Santa Catarina dão conta de que a maior parte dos funcionários da Tríplice tem ligação profissional com a UFSC, destino dos primeiros milhões do ministério na solução para a saúde pública municipal.
Apesar das contestações em relação à lisura da contratação e das investigações da PF, a Tríplice não deixou de lucrar com o acordo firmado com a universidade. Uma das justificativas dos recebimentos é o treinamento de pessoal para o uso do sistema, em contratos, mais uma vez, firmados de maneira indireta entre a Tríplice e o poder público. Quem repassou os valores à empresa do professor Zanini no sistema público de Embu das Artes (SP), por exemplo, foi a Libbs Farmacêutica. O acerto pelo treinamento foi de R$ 218 mil.
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Refém por opção?
O professor Bernardo Strobel Guimarães, mestre e doutor em direito do Estado, explica que esse tipo de contratação indireta, com dispensa de licitação, retira da administração pública a capacidade de controlar o fluxo de recursos, o que abre espaço para irregularidades. “Não quer dizer, a priori, que isso obrigatoriamente torne o processo irregular. Mas esse modelo de contratação, nesse caso, tornou o Ministério da Saúde refém da fundação da UFSC, já que a pasta não obteve a capacidade de gerir a ferramenta”, comentou.
“Toda vez que há recurso público entregue para alguém, esse dinheiro precisa ter um regime de controle bastante severo. O que o Ministério da Saúde fez foi se servir da estrutura da universidade, que terceirizou o desenvolvimento do programa por meio de uma fundação. A fundação também terceirizou o serviço, sem licitação. Mas o fato de você não licitar o contrato não significa que pode fazer o que quiser. Tem que justificar a escolha da empresa. E, se o TCU reprovou isso, é porque houve indícios de irregularidade no fluxo do dinheiro”, completou Guimarães.
O professor disse ainda que, mesmo que o processo no TCU não tenha chegado ao fim, existem instrumentos processuais que poderiam impedir que a Tríplice siga se aproveitando do contrato supostamente irregular, por meio de medidas cautelares. No entanto, uma vez que a empresa passou a firmar contratos com municípios, sem envolver recursos da União, isso se torna uma prática fora do alcance do tribunal.
Os outonos passam e seu Oscar (que pediu para não ter o sobrenome revelado) pensa em desistir de saber a causa as dores nas costas. “Já fui radiografado o suficiente.”
A reportagem do iG entrou em contato com a Tríplice Consultoria, mas não obteve retorno. O Ministério da Saúde também foi contato, em recorrentes oportunidades, mas não enviou resposta até a publicação desta reportagem.