Em vigor desde 2011, a lei estadual 14.466 proíbe que profissionais de saúde vistam aventais e jalecos fora das clínicas e hospitais. A regra ainda reforça uma exigência do manal de biossegurança laboratorial da Organização Mundial de Saúde (OMS). Quase uma década após a publicação, porém, o que encontramos nas ruas aponta uma cultura diferente: não é preciso esperar mais de 30 minutos nas calçadas de alguns dos maiores hospitais da capital para encontrar profissionais vestidos no tradicional uniforme branco.
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Apenas durante algumas horas da manhã, a reportagem do iG flagrou mais de uma dezena de profissionais que desobedeceram a lei estadual. Na rua Dr. Cesário Mota Júnior, onde está localizada a Santa Casa de Misericórdia , médicos e enfermeiros consomem alimentos e circulam sem preocupação. Sempre de jaleco.
Questionado sobre o hábito, um médico - que preferiu não se identificar - argumentou com o ritmo frenético da profissão . “É difícil encontrar tempo até para ir ao banheiro, imagina se a gente for tirar o jaleco e vestir de novo a cada vez que for necessário atravessar a rua?”, disse ele, que saiu do hospital para comprar uma salada de frutas. De acordo com o profissional, “um celular ou caneta podem carregar tantas bactérias quanto a roupa”.
Comerciante de doces na rua do hospital desde 1970, um homem que também escolheu não se identificar disse que, embora saiba que a lei existe, não se importa que os profissionais descumpram a regra. “Um policial não tira a farda durante o horário de trabalho. Um bombeiro não tira a farda. Os médicos precisam andar assim para serem reconhecidos como médicos”, diz. Para ele, o único problema seria trajar o uniforme dentro de estabelecimentos como restaurantes , por exemplo.
No Hospital das Clínicas , bairro de Cerqueira César, o cenário não é diferente. Frequentemente, profissionais e estudantes de jaleco passeiam pelo área que engloba o complexo do Hospital além dos institutos da Criança, Ortopedia e Traumatologia e do Coração.
A comerciante Fernanda Oliveira, que mantém há cinco anos uma lanchonete no local, critica o hábito e diz que o traje não é permitido dentro do estabelecimento. “Eles sabem que é proibido entrar aqui, então sempre tiram quando eu peço. Às vezes, os médicos pedem uma água ou um chiclete ali da porta mesmo e eu vou levar”, comenta ela, que faz questão de apontar um frasco de álcool gel disponível na bancada para os clientes que querem higienizar as mãos.
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No local, a justificativa de quem usa o jaleco na rua não é a pressa. De acordo com um grupo de médicas abordado sobre o assunto, o complexo da instituição - com prédios distribuídos ao longo do quarteirão - faz com que elas precisem cruzar a distância entre um atendimento e outro. “A lei diz que é proibido usar jaleco fora do hospital e nós ainda estamos dentro dele”, afirmou uma profissional que, apesar de negar a infração de sua parte, preferiu não ser identificada. Segundo a lei, o médico, enfermeiro ou técnico que desrespeitar a regra pode ser multado em R$ 174,50.
No mesmo espaço, porém, há quem discorde. Para a médica neurologista Lígia Sotero, o hábito de tirar o jaleco ao sair do hospital deve ser tão frequente quanto lavar as mãos. “Desde que eu era estudante tenho a mania de guardar o jaleco sempre que preciso sair. Eu sei que é normal esquecer, mas aqui fora, mesmo no estacionamento, já é uma via comum com todas as bactérias da rua”, defende a profissional que, já durante a entrevista, guardava o traje na bolsa.
Assunto é polêmico entre especialistas
De acordo com o infectologista Luciano Arraes, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, o risco está nas bactérias que podem ser carregadas da rua para as unidades médicas. “A contaminação existe para os profissionais e pacientes. As bactérias do jaleco podem não trazer uma doença imediatamente, mas caso o profissional - e a roupa que foi exposta - participe de procedimentos cirúrgicos ou punções venosas , onde há a quebra de barreira da pele do paciente, essas bactérias podem cair na corrente sanguínea e provocar infecções graves, difíceis de tratar por serem hospitalares e geralmente resistentes a antibióticos”, explica.
Crítico ao uso do jaleco branco de maneira geral, Arraes defende que o traje deveria ser usado apenas em consultórios, onde o contato com o paciente é menor e o risco de infecções também. “O que existe hoje é o uso incorreto de um equipamento que antigamente era visto como proteção, mas que sempre foi usado como forma de diferenciar o status de médico ou alguém importante”, diz. Para o profissional, “o mais correto seriam capotes descartáveis com uso individual
para cada paciente examinado, porém isso gera um custo elevadíssimo que nem os hospitais privados conseguem manter”.
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O Conselho Regional de Medicina de São Paulo - Cremesp, porém, mantém o posicionamento divulgado após a publicação da “lei do jaleco” e defende que, apesar de não recomendar o uso do equipamento nas vias comuns, "Não existe até o momento nenhuma comprovação, evidência ou descrição de casos de infecção ou contaminação
de pessoas que tiveram contato com médicos que usam jalecos em ambientes não hospitalares".
A instituição afirma, em nota, que “apoia e promove todas as medidas de biossegurança" mas que “medidas educativas e campanhas de esclarecimento são mais eficazes do que legislações punitivas que assustam a população, afrontam os direitos individuais e ignoram as evidências científicas”. Logo, apesar do risco de multa pela lei estadual, o Conselho não considera o uso do jaleco em abiente externo uma infração
.
Atualizado este ano, o Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina não possui pontos sobre o uso indevido do jaleco. O primeiro artigo de responsabilidade profissional do documento, porém, reforça que é vedado ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”.
Questionada sobre o assunto, a Santa Casa de Misericórdia diz que “o cumprimento da Lei nº 14.466, de 08/06/2011, é de responsabilidade do profissional da saúde” mas reforça que a instituição realiza “campanhas de comunicação interna, ressaltando os motivos pelos quais o profissional não pode circular fora do ambiente de trabalho vestindo equipamentos de proteção individual, entre eles jalecos e aventais”. O Hospital das Clínicas não se ponunciou até a publicação desta matéria.