“Era muito estranho viver com HIV no início dos anos 1990.” Essa é a declaração do ativista independente e escritor Beto Volpe, de 58 anos, que contraiu o vírus em 1989, aos 28. Natural de São Vicente, no litoral de São Paulo, ele diz que, na época, até os maiores especialistas do mundo se confessavam impotentes perante uma ameaça até então inusitada.
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Volpe conta que foi contaminado pelo HIV após ele e o então namorado abolirem o uso de preservativos. Quando o relacionamento terminou, ele resolveu fazer o exame que detecta o vírus e, no final daquele ano, veio o diagnóstico positivo. Recebê-lo, no entanto, não foi fácil. “Foram várias e sucessivas maneiras de ver a vida”, diz.
O escritor destaca que, na ocasião, o pensamento era regrado pela morte. “Esperava morrer depois de um, dois meses. Um ano no máximo. Comecei a ver meus amigos morrendo de formas horríveis”, destaca. “Não havia tratamento, somente ignorância generalizada sobre o inimigo”, continua.
De acordo com um Boletim Epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, desde meados de 1981, quando os primeiros casos de AIDS foram identificados, até 1996, aproximadamente 30 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV em todo o mundo. Em relação ao Brasil, foram notificados 174.241 casos da doença até 1998.
Ainda segundo o Ministério da Saúde, os primeiros medicamentos antirretrovirais (ARV) surgiram na década de 1980. As medicações tem como objetivo evitar o enfraquecimento do sistema imunológico. Com isso, é possível controlar a multiplicação do vírus e fazer com que haja uma evolução no quadro da pessoa com AIDS que, apesar de ser controlável, não tem cura.
O início do tratamento para HIV
No caso de Volpe, ele diz que, apesar de alguns medicamentos terem sido descobertos, como o AZT, o D4T e o 3TC, eles não impediam que a contagem de suas células de defesa caísse a cada exame. Como consequência, o escritor ficava cada vez mais ansioso. “A inconsequência dos atos e a ideia de mortalidade e imortalidade simultâneas eram muito esquisitas”, afirma.
Segundo Natacha Cerchiari, infectologista do Serviço de Extensão ao Atendimento de pacientes vivendo com HIV - HCFMUSP, os antirretrovirais iniciais apresentavam ação semelhante às medicações mais atuais, em que cada uma das classes atua em uma das fases do ciclo de reprodução do vírus.
“A grande diferença da terapia antirretroviral da época para a atual é que, com a utilização de uma única medicação, o vírus ‘aprendia’ a se defender, ou seja, ocorria seleção de mutações no material genético do vírus, que acabava se tornando resistente à medicação. Portanto, a infecção era controlada por um tempo, mas o vírus voltava a se reproduzir e causar doença”, diz Natacha.
Avanços no tratamento do HIV
Com o passar dos anos, as medicações ficaram mais modernas, o que facilitou a adesão do paciente ao tratamento. Além disso, os efeitos colaterais foram reduzidos e o número de vezes em que havia necessidade de tomar a medicação no dia também diminuiu. Nos anos 1990, havia esquemas de cerca de 10 a 15 comprimidos por dia.
Em 1996, o Sistema Único de Saúde passou a distribuir os medicamentos. “O tratamento distribuído gratuitamente pelo SUS possibilitou o controle do HIV em todos os pacientes infectados no Brasil. Na época em que foi iniciado, a grande importância foi a redução do número de pacientes que evoluíam para AIDS e, consequentemente, do número de mortes”, diz a infectologista.
Atualmente, é possível perceber que, qualquer paciente com HIV pode, ao tomar a medicação corretamente, ter uma vida igual à quem não tem o vírus. “Pode ter filhos, trabalhar em qualquer profissão, praticar exercícios físicos. Inclusive apresentam expectativa de vida semelhante à da população geral, ou seja, não há limitações”, afirma Natacha.
Você viu?
Exemplo disso é o ator e youtuber Gabriel Comicholi, 24 anos, de Curitiba, que descobriu ter HIV em 2016. No começo, a descoberta foi bem assustadora. “No início, a gente pensa aquelas coisas clichês, que vai morrer, por não ter informação”, diz o jovem, que não conhecia muito sobre o assunto quando foi diagnosticado.
O tratamento, por sua vez, foi iniciado rapidamente. “Ele é todo cedido pelo SUS. Isso facilita muito. Em dois, três dias, eu já estava tomando os medicamentos”, pontua. No Youtube, Comicholi é responsável pelo canal “HDIÁRIO”. O seu primeiro vídeo, inclusive, em abril de 2016, foi para falar sobre como descobriu que estava com o vírus e toda experiência em torno disso.
Atualmente, os pacientes usam de um a dois comprimidos ao dia, em uma tomada única. É o caso, por exemplo, do youtuber. Ainda há alguns efeitos colaterais da terapia antirretroviral, mas eles são acompanhados de perto pelo infectologista e, caso necessário, há medicações disponíveis para a troca se o paciente apresentar efeitos colaterais que dificultem a adesão.
“Costumo dizer ao paciente que tomar a medicação tem que ser como ‘tomar água’. Tem que tomar todo dia, mas não deve atrapalhar a sua vida”, destaca Natacha. É importante destacar que o tratamento ajuda na redução da transmissão do vírus, uma vez que pacientes com HIV que tomam a medicação e apresentam carga viral zerada no sangue (indetectável) não o transmitem.
É importante ressaltar, ainda, que a carga viral zerada no sangue não significa cura, porque o vírus fica “adormecido” em locais conhecidos como reservatórios virais e, se o paciente parar de tomar o remédio, o HIV “acorda” e volta a proliferar, podendo evoluir para adoecimento, que é o surgimento da AIDS.
Uma estratégia utilizada também é a PEP (profilaxia pós-exposição), que consiste na tomada de medicação antirretroviral (a mesma medicação usada no tratamento do HIV) após atividades que apresentem possibilidade de exposição ao vírus, como relação sexual sem preservativo, situações de violência sexual e outros casos.
Conforme explica Natacha, essa medicação deve ser iniciada em até 72 horas da exposição e dura 28 dias. "O Ministério da Saúde distribui gratuitamente a PEP para qualquer paciente que tiver exposição e quiser fazer uso. Não há restrições para grupos nesse caso", destaca a infectologista. O importante é procurar uma Unidade Básica de Saúde.
“Sentença de morte” e preconceito na sociedade
As diferenças do tratamento hoje em dia e do início são notáveis. “Até o início da terapia antirretroviral altamente eficaz (HAART, sigla em inglês), em meados dos anos 90, ter HIV era quase uma sentença de morte para os pacientes. No início, eles acabavam tendo efeitos colaterais importantes da medicação, dificultando a realização de atividades diárias”, destaca a profissional.
E as situações de preconceitos não eram poucas. “As pessoas, em geral, tinham medo de pegar HIV, chegando ao cúmulo de atravessar a rua para não passar em frente a casa de pessoas com o vírus. Essa situação do início da epidemia contribuiu para o estigma que ainda vemos na sociedade”, pontua Natacha.
Prevenção do HIV por meio da PrEP
Desde dezembro de 2017, o SUS passou a disponibilizar a PrEP (profilaxia pré-exposição) . “É uma estratégia nova para prevenção do HIV e também muito segura. Ela consiste na tomada diária de medicação e previne que haja contaminação pelo vírus mesmo que o paciente se exponha a alguma situação de risco de contraí-lo”, destaca a infectologista.
Natacha vê essa notícia como uma vitória para o Brasil. Conforme explica, a PrEP aparece em estudos internacionais como a forma de prevenção mais eficaz contra o vírus. Para se ter uma ideia, a cidade de São Paulo reduziu em 17,8% os casos de HIV em 2018 em comparação com 2017, segundo dados divulgados pela Prefeitura.
“Claro que não podemos retirar a importância de ações como campanhas de conscientização, distribuição gratuita de preservativos, testagem e tratamento de pacientes. Contudo, a redução importante do número de infecções vem sendo vista, no mundo inteiro, como uma consequência do início da PrEP”, destaca a médica.
A liberação desse tratamento, entretanto, é apenas para alguns grupos: homens que fazem sexo com homens, casais sorodiferentes - em que uma das pessoas tem HIV e a outra não, travestis, mulheres ou homens transexuais e profissionais do sexo. A prevenção é apenas com o HIV e não outras infecções sexualmente transmissíveis. Portanto, ainda há necessidade do uso de preservativos.