“Você não vai morrer, eles vão cuidar de você, por isso não pode tirar esse cateter do nariz, tá?”. Essa foi uma das últimas frases que disse para minha mãe. A ideia era acalmá-la. “Tenho que ir para UTI? Para onde as pessoas com Covid vão antes de morrer?”, ela disse. Foi no dia 9 de dezembro de 2020, um pouco antes de sua internação em uma Unidade de Terapia Intensiva, por Covid-19 , no hospital Santa Isabel, em São Paulo.
Para alegrá-la, fizemos uma videoconferência com a única neta, de 11 anos. Ela estava preocupada com a avó, mas mudamos de assunto. “Tetê, conta pra vovó porque você está feliz”. “Porque hoje foi meu último dia de aula, uhuuu!”. Sorrimos as três.
Naquela quarta-feira, 848 pessoas perderiam a vida em 24 horas para a Covid-19.
Durante boa parte da minha vida, eu fui simplesmente a filha única da “tia Zélia”. Caçula de oito irmãos, Zélia da Silva Pizarro, 76, sempre teve uma relação muito próxima com irmãos, irmãs e sobrinhos. Principalmente com as sobrinhas, já que algumas foram suas melhores amigas
.
Solidária, com uma memória muito acima da média, tinha uma inteligência e uma competência que surpreendia quem ousasse subestimá-la, já que além de tudo, era linda. Minha mãe tinha muitos talentos, uma bela voz, e adorava cozinhar.
A infecção pelo novo coronavírus
(Sars-Cov-2) se deu, muito provavelmente, enquanto estávamos no hospital. No dia 26 de novembro ela realizou, em Belo Horizonte, uma quimioembolização
em nódulos malignos no fígado. O procedimento cirúrgico se resume a injetar medicamentos de quimioterapia diretamente nos vasos sanguíneos que alimentam um tumor. Era uma quinta-feira, e o Brasil registrava 698 mortes por Covid-19 em 24 horas.
Em 2018, ela já tinha passado por uma cirurgia semelhante. Agora, mantínhamos o controle do câncer com a mesma equipe médica que estava na capital mineira. Aqui vale um esclarecimento. Em julho de 2019, voltei para São Paulo, minha terra natal, para trabalhar no portal iG . Em dezembro, chegou a família. Vieram meu marido, minha filha e a dona Zélia, como os novos vizinhos a chamavam.
No início de 2020, quando a pandemia
ainda era uma grande incógnita, ela foi a Belo Horizonte fazer o acompanhamento da doença. A notícia era boa: os nódulos não tinham crescido muito, não se espalhavam, um quadro estável. Era início de abril e combinei com o médico que no fim de julho faríamos uma reavaliação. “Quando essa coisa de pandemia já estiver passando”, dizíamos. Estávamos redondamente enganados.
No dia 15 de julho, o Brasil já tinha quase 2 milhões de casos confirmados de Covid-19 e o número de mortes passava de 74 mil. Ir a médicos e hospitais para fazer exames com uma senhora diabética e com doença hepática grave me parecia inconcebível. No dia 18 de agosto conversei com a hepatologista sobre a situação. Eram 1.300 mortes registradas em 24 horas. Mas em São Paulo, onde morávamos, os números começavam a diminuir.
Fizemos a ressonância no fim de setembro, em um laboratório, felizmente, vazio. No táxi da volta, minha mãe indagou: “Os shoppings já reabriram? Vamos passar em um antes de ir para casa? Tem tanto tempo que não compro uma roupinha”. Ela estava exausta do isolamento forçado há mais de seis meses. “Ainda não dá, mãe, quem sabe no Natal”. Ela adorava passear no shopping e não voltou a fazê-lo.
O resultado da ressonância saiu no dia 21 de setembro, quando 455 mortes por Covid-19 foram registradas em 24 horas. Quatro dias depois, o governador de São Paulo , João Doria, anunciava o fechamento do último Hospital de Campanha aberto no Estado, o do Ibirapuera. Parecia que o pior da pandemia tinha passado. Continuávamos errando feio.
Dentro de casa, as notícias não eram tão boas. Com o laudo da ressonância, a médica hepatologista identificou nódulos maiores. Seria necessário fazer uma nova cirurgia . Pelo menos o risco de infecção pelo novo coronavírus era menor, não é mesmo?
Começamos os trâmites burocráticos. Era necessário autorizar a cirurgia no plano de saúde , fazer o pré-operatório, mais exames, alugar um carro para a viagem, um local para ficarmos em BH.
Minha mãe sempre viveu às turras com os médicos. Mesmo com todas as graves enfermidades, nunca fez dieta e tomava remédios quando queria. Na última consulta em São Paulo, descobrimos que não estava se medicando direito.
“A senhora precisa tomar os remédios , dona Zélia. Sabe por quê? Porque pelos exames que tenho em mãos a senhora ainda vai viver muito. Tem saúde para viver muitos e muitos anos, e os medicamentos vão dar qualidade para sua vida”, disse o médico que fez o pré-operatório.
A frase não sai da minha cabeça. A Covid-19 nos roubou esses anos todos. É triste e revoltante.
A essa altura, porém, uma segunda onda da pandemia na Europa chamava a atenção. Na segunda quinzena de outubro, o cenário já estava colocado, mas se falava de um aumento de casos entre jovens e menos letal.
No dia 21 de outubro, a média móvel de óbitos por Covid-19 estava em 526 no Brasil. O que nos preocupava, naquele momento, era que os casos e as mortes tinham estabilizado em um patamar alto e não parecia que iriam cair.
No dia 29 de outubro, tivemos a confirmação que a cirurgia seria em 26 de novembro. Entre uma data e outra, a média móvel em 7 dias de óbitos por Covid-19 passou de 439 para 479. Estávamos entrando na segunda onda do Brasil .
A internação ocorreu às 6h do próprio dia 26. O hospital estava cheio e muita gente usando as máscaras da maneira errada. Aquela quinta-feira foi o único dia que não trabalhei, mesmo de forma remota, já que estávamos muito próximos do segundo turno das eleições municipais. Fiquei todo tempo com a minha mãe. Por volta de 14h, o médico me informou que a cirurgia tinha acabado: "tinha ocorrido muito bem, mas...".
É exatamente esse ‘mas’ que aterroriza quem tem um familiar com doença grave
. Ela teria que passar uma noite na UTI. A pressão havia subido muito durante o procedimento e chegado a 27 por 10. Depois também soube que um vaso sanguíneo havia se rompido.
Antes da cirurgia, havia perguntado ao médico sobre a possibilidade de voltarmos para casa naquele mesmo dia de novembro. Os casos de Covid-19 em Belo Horizonte estavam aumentando. Mas ele descartou. Uma noite na UTI me alarmou ainda mais, porém ele tentou me acalmar: “é outra UTI, não tem caso de Covid-19, pode ficar despreocupada”, ouvi.
“Da outra vez não precisei ficar em UTI”, lembrou a atenta Dona Zélia, se referindo ao procedimento de 2018. Consegui entrar na unidade com ela, que estava agitada. Pedi uma cadeira para a enfermeira, mas fui informada que não teria cadeira porque não poderia ficar ali. “Para não trazer riscos a ninguém”, disse o médico plantonista. Fiquei enquanto minhas pernas aguentaram.
“Eu tô bem, filhinha, pode ir sossegada”, me disse antes de nos despedirmos. Passei uma noite angustiada. “Estou sentindo um pouquinho do que os familiares de quem tem Covid-19 sentem”, comentei com meu marido. Teria que esperar uma ligação do hospital para saber como ela estava.
Meio-dia da sexta-feira (27) me ligaram. Ela sairia da UTI e iria para o quarto. Fui sem almoço para o hospital porque eles só a liberariam quando um acompanhante chegasse. Nesse dia, fui comer em torno de 16 horas, em uma lanchonete em frente ao hospital. Tinha dormido mal e estava cansada, os elevadores demoravam muito porque tinham sido separados entre os utilizados pela “ala Covid” e a “ala não Covid”.
De repente, me dei conta que estava ‘pescando’, encostada na parede do elevador de um hospital. A porcaria de um elevador de hospital. Procurei um totem de álcool em gel e besuntei minha mão.
Mas a verdade é que eu fiquei por muitas horas com a mesma máscara , coçando os olhos e andando para baixo e para cima, pegando Uber, resolvendo burocracias de internação, frequentando lanchonetes cheias de médicos, enfermeiros e pacientes.
Ainda acho que me contaminei nesse dia. Em algum momento de desatenção, de cansaço, de burrice. Porque sim, a primeira pessoa a se contaminar pelo novo coronavírus fui eu. Por mais que eu tente me consolar com a ideia de que estava tentando fazer o melhor por ela, o remorso existe, não tem jeito. Fico buscando na memória atos que poderiam ter sido evitados. A hora que tirei a máscara para dormir no quarto do hospital, um carinho no cabelo para acalmar o incômodo com as agulhadas, o pacote de mini pão de queijo compartilhado.
Fato é que no sábado (28) de manhã ela teve alta. Se inicialmente passaríamos um dia no hospital , acabamos ficando três. Se pretendíamos voltar no fim de semana para São Paulo, adiamos o retorno para terça-feira de manhã. A média móvel de óbitos em 7 dias por Covid-19, naquele sábado, chegava a 510. No domingo, plantão do segundo turno das eleições municipais, trabalhei normalmente. Ela recebeu poucas visitas de sobrinhas queridas.
Como nem eu nem minha mãe dirigimos, tanto a ida como a volta foram de carro, com motorista, um amigo da família. Felizmente, ele não se contaminou. No percurso, porém, eu já estava com o corpo bem pesado, dormindo praticamente todo o tempo. Achei que fosse esgotamento pelos dias atribulados. Não era. Em São Paulo, começaram a dor de garganta e a febre .
Na quarta-feira (2) de manhã resolvi ir ao hospital. O raio-X mostrava uma infecção nos brônquios que poderia ser Covid-19. A médica me passou vários remédios, um atestado médico e orientou a fazer o exame RT-PCR apenas na sexta-feira. Expliquei a situação da minha mãe. “Devo me preocupar?”, perguntei inutilmente, pois já que sabia a resposta. “Deve. Ela tem que ficar em constante observação”.
Fiquei isolada no quarto de casa, preocupada com a família. Febre, tosse, muita dor de cabeça. Quem acompanhava minha mãe nesse período era meu marido. No sábado, 5 de dezembro, soube que ela estava com febre . O que estava ruim ficou bem pior. Chorei de medo, me apavorei.
“Calma, o que for necessário a gente vai fazer, agora eu só preciso que você se acalme”, me dizia o marido. No sábado de madrugada ela foi internada no hospital Albert Sabin enquanto eu esperava em um quarto sem poder sair.
Conseguimos uma cuidadora que já havia sido contaminda pelo novo coronavírus para dormir com a minha mãe. Nos dias seguintes a febre baixou, e a paciente se alimentou. Conversávamos por videoconferência e ela parecia bem. Na segunda-feira, 7 de dezembro, recebi o resultado positivo do meu exame. Chorei por mim, por minha mãe, pelos meus.
Estava na cobertura diária da Covid-19 desde fevereiro deste ano tão inverossímil que foi 2020. Antes mesmo da doença chegar ao Brasil já me assustava com as notícias que chegavam da Itália, a falta de medicamentos e respiradores na França. Acompanhei tantas coletivas, colhi tantas informações, e agora acontecia comigo, com a minha família, e eu sabia exatamente o que poderia e acabaria acontecendo.
No mesmo dia que eu confirmei que tinha o novo coronavírus, a média móvel de mortes no país nos últimos 7 dias chegava a 603.
Na terça-feira de manhã (8), resolvi voltar ao hospital. Os remédios tinham acabado e meu quadro não melhorava, não tinha paladar, a tosse era constante, a dor no peito e nas costas também.
Pouco antes de sair, me ligaram do hospital onde minha mãe estava internada. O exame tinha dado positivo para Covid-19, mas a tomografia do pulmão não mostrava sinal de infecção. Ela poderia voltar para casa e ficar em observação.
Meu marido me deixou em um hospital e foi buscar a Dona Zélia em outro. Ele a deixou em casa, deu almoço e, sob protestos, alguns remédios. Enquanto isso, eu fazia uma tomografia do pulmão, uma gasometria e um hemograma.
Segundo a médica, 25% do meu pulmão estava tomado pela infecção, mas por se tratar de Covid-19 isso não era considerado um quadro grave. Eu teria que continuar de repouso, tomando os remédios, mas poderia me cuidar em casa.
Ainda no hospital, decidi que faria o isolamento com a minha mãe no apartamento dela. Moramos no mesmo condomínio, em prédios vizinhos. Cuidaríamos uma da outra e eu evitaria o risco de contaminar o resto da família. Liguei para avisá-la mas ninguém atendeu. Imaginei que ela estivesse dormindo.
Nessa terça-feira choveu muito em São Paulo, então demoramos quase duas horas para chegar em casa. Toquei a campainha da minha mãe por volta de 19h. Eu estava otimista pensando que o pior, provavelmente, já tinha passado.
Ela não atendeu a porta. Por cerca de uma hora eu e meu marido tentamos entender o que estava acontecendo, porque ela não atendia a campainha, nem o telefone. Como o apartamento dela é no térreo, consegui abrir a janela do banheiro. “Mãe, sou eu, abre a porta, por favor”. “Tô indo, filha, um minutinho”, ela respondeu. Foi um alívio, mas durou pouco.
A voz vinha do quarto de hóspedes. “Mãe, você caiu?”. “Não, filha, eu já tô indo”. Não veio. Sempre tive uma cópia da chave do apartamento dela, porém, recentemente ela tinha trocado o segredo da fechadura. Tivemos que chamar um chaveiro.
Entrei primeiro e encontrei minha mãe caída no chão, muito confusa. No lugar das palavras, sílabas desconexas. Mas ela me entendia. Aos poucos, consegui tirá-la do chão frio, e que também estava molhado, deitá-la em um colchonete e colocar a sua cabeça em um travesseiro.
Chamamos uma ambulância que a encaminhou para o Hospital Universitário que fica muito próximo da nossa casa. A saturação estava em 80, batimentos cardíacos baixos. A equipe me permitiu ficar com ela porque também estava com Covid-19. Enquanto buscávamos uma vaga em outro hospital, ela foi colocada no oxigênio e estabilizou.
A confusão mental , porém, persistia. Em vários momentos ela tentava se levantar ou tirar o cateter do oxigênio do nariz. Eles colocaram uma máscara, ela também tentou tirar. “Não, Lu! Isso não é máscara!” ela protestava. Pelo menos as palavras tinham voltado.
Ela acabou dormindo. Uma enfermeira gentilmente me perguntou: "você comeu?" - naqueles dias a falta de apetite imperava. Eu não tinha comido nada, na verdade, durante todo o dia. Ela me aconselhou a forçar um pouco.
Mais de meia-noite, a alternativa foi pedir um BigMac no iFood. Conversei de longe com o entregador. “Pode colocar aí no chão, amigo”. Comi sem conseguir distinguir o que era hambúrguer do que era alface ou molho especial. Simplesmente, nada tinha gosto.
Por volta de 7 horas da quarta-feira (9) fui informada que ela seria transferida, estavam esperando uma ambulância , que chegou às 11h. Para acompanhá-la até o hospital Santa Isabel, fui paramentada como nos filmes: macacão, luvas, touca no cabelo, protetor nos pés. Seguimos do Butantã até Santa Cecília com a sirene às vezes ligada. O dia estava ensolarado e muitas pessoas se exercitavam na rua sem máscara. Eu me senti em uma realidade paralela.
No novo hospital fomos encaminhadas para a emergência e eu questionei. Meu medo era que ela perdesse a vaga no apartamento, pois os hospitais, principalmente os particulares de São Paulo, estavam cheios. Exigi um retorno da equipe da internação. Como também estava contaminada, as enfermeiras mediaram a conversa. A verdade é que o médico já pretendia levá-la para a UTI.
Até aquele momento, não entendia muito bem o que estava acontecendo, já que a tomografia do pulmão, tirada um dia antes, não tinha mostrado sinal de infecção. Imaginei que pudesse ser um AVC por causa da diabetes , mas na madrugada anterior fizeram uma tomografia da cabeça e estava tudo bem.
Com o laudo da primeira tomografia do pulmão em mãos, o médico que a enviou para a UTI me explicou: “a falta de infecção em uma tomografia tirada nos primeiros dias de sintomas da Covid-19 deve ser vista com muita atenção, principalmente no caso de idosos. O quadro pode piorar em algumas horas , não é a primeira vez que vemos isso”.
Antes de ir para a UTI, passamos na ala de exames e minha mãe fez uma nova tomografia do pulmão. Foram nossos últimos momentos juntas. No dia seguinte, no primeiro boletim sobre a saúde dela que recebi pelo telefone, soube que 75% do pulmão dela já estava tomado.
Por precaução, fui para o apartamento dela completar meu isolamento. O esforço físico dos últimos dias cobrou seu preço. Mal conseguia falar sem tossir, a dor no pulmão e nas costas persistiam.
Dois dias depois da segunda internação da minha mãe, foi meu marido que começou a apresentar sintomas. Durante os dias que se seguiram, vivi uma montanha-russa emocional.
Enquanto me recuperava aos poucos, meu marido adoecia e alguns dias depois minha filha começou a apresentar febre. No final, todos testamos positivo para Covid-19. Felizmente, os dois tiveram sintomas leves da doença, sem ter o pulmão afetado.
Já o quadro da minha mãe se agravava. Ela foi intubada duas vezes e os outros problemas de saúde não permitiam que a inflamação no pulmão diminuísse.
Na sexta-feira (18), a ligação que costumava ser em torno de 14h aconteceu às 16h. Liguei seguidas vezes para o hospital e a enfermeira dizia que a médica plantonista , Dra. Gisele, estava muito ocupada.
Quando conseguimos nos falar, ela se desculpou. “Você deve estar vendo que a pandemia está piorando... Estamos com a UTI lotada com muitos quadros graves”. No fim do telefonema, agradeci. “Acompanho essa pandemia desde o início e queria agradecer a senhora, agradecer a equipe, não apenas pela minha mãe, mas também por ela, e por todos”, disse.
No fim de semana, as notícias continuaram piorando. Ela tinha sido colocada em coma induzido e teria que passar por hemodiálise. No domingo (20), fui levar uma meia de compressão e aproveitamos para entregar fotos, cartinhas e um desenho da minha filha. Enquanto pedia à enfermeira que lesse a carta para minha mãe, não consegui evitar as lágrimas. Ela apertou forte a minha mão por um estreito vão no vidro grosso que nos separava.
Naquele mesmo domingo, por volta de 18h recebi o pior telefonema da minha vida. Enquanto a imprensa divulgava que a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias chegava a 765, eu perdia a minha mãe.
A noite daquele domingo foi longa. Minha irmã por parte de pai e minha cunhada, mesmo correndo o risco de se contaminarem, vieram ficar com a minha filha. Eu e o marido fomos fazer os trâmites burocráticos.
Primeiro o necrotério, que fica em frente a duas árvores lotadas de morcegos. O voo dos animais, seus variados tamanhos e as rasantes acrobáticas ocupavam a nossa mente enquanto esperávamos outra família ser atendida.
Na sequência, a funerária. Também não estava vazia. “Esse negócio de Covid não é brincadeira não. Quando a gente viu isso? Quatro, cinco pessoas esperando atendimento?”, disse o funcionário. Uma barata do tamanho de uma caixa de remédios ornamentava a porta da sala onde os modelos de caixões nos aguardavam.
Era necessário voltar ao necrotério para reconhecer o corpo e fazer a despedida possível. Como o caso era de Covid-19, o caixão seria lacrado e não seria permitido um velório. Mas antes do último encontro era necessário esperar o carro da funerária chegar. “E olha, de meia-noite até uma hora eu faço minha pausa”, avisou o responsável pelo necrotério pelo interfone.
O carro da funerária que levaria o corpo de minha mãe para o cemitério Vila Formosa estacionou dez minutos depois de meia-noite. Tocamos o interfone algumas vezes, mas o rapaz cumpriu o aviso e só reapareceu quando faltavam dez minutos para uma hora da manhã.
Não pude me aproximar do corpo da minha mãe, mesmo informando que já tinha tido Covid-19. “A regra é essa, desculpe, daí não pode passar”, me disse o responsável. No outro dia de manhã, participamos apenas os três, a filha, o genro e a neta, de um enterro rápido, com sepultadores paramentados de branco e máscaras azuis.
Há dois dias, o Brasil voltou a registrar mais de mil mortes por Covid-19 em 24 horas. Mesmo assim, as cenas de aglomerações e imprudência se multiplicam nesse final de 2020. Reflito sobre meus desejos para 2021, mas me resigno com o fato que dificilmente eles serão alcançados. Espero, pelo menos, ter força, para segurar os demais rojões que nos esperam.