A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) levantou diversas dúvidas sobre a Sputnik V ao analisar os pedidos de importação da vacina russa nessa segunda-feira (26/4).
Os responsáveis pelas três áreas técnicas da Anvisa recomendaram de forma unânime que a importação não fosse autorizada por conta de problemas identificados pela agência, mas até as 22h30, o grupo ainda não tinha chegado a uma decisão final.
Há uma grande expectativa em torno da decisão da agência, porque dezenas de milhões de doses já foram compradas por Estados, municípios e pelo governo federal. Autoridades brasileiras esperavam que o envio pela Rússia ajudasse a aliviar a dificuldade do país em conseguir doses suficientes para aumentar seu ritmo de imunização.
Mas, de acordo com técnicos da Anvisa, não foram enviadas informações cruciais para a análise do pedido. Além disso, os dados que a agência recebeu ou que buscou junto a empresas e autoridades sanitárias criam sérias dúvidas sobre a segurança, qualidade e eficácia do imunizante, assim como uma inspeção realizada em fábricas usadas para produzir a vacina na Rússia.
Gustavo Mendes, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos, ressaltou que o fato de os resultados dos estudos clínicos que atestavam a segurança e eficácia da Sputnik V terem sido publicados em uma revista científica de renome, a The Lancet, não é uma garantia de aprovação por uma autoridade sanitária.
"Uma avaliação sanitária é diferente da que é feita por uma revista científica. Uma revista científica não tem por objetivo recomendar ou não o uso de uma vacina, nem tem o compromisso de verificar boas práticas clínicas ou tem como pressuposto o acesso a todos os dados brutos e laudos", colocou Mendes.
"Como, por exemplo, vamos ter confiança nos dados de eficácia se não temos acesso ao diagnóstico das pessoas (que participaram do estudo) que tiveram covid?"
Até agora, a Sputnik V teve seu uso emergencial ou registro definitivo aprovado em 61 países, de acordo com o Instituto Gamaleya, responsável por seu desenvolvimento.
Mas a gerente-geral de monitoramento de produtos sujeitos a vigilância sanitária no Brasil, Suzie Marie Gomes, explicou que, entre 51 países consultados, apenas 14 informaram que estavam de fato usando a vacina russa.
"A maior parte dos países em que houve comercialização da vacina não possui tradição em farmacovigilância", disse Gomes.
A Anvisa está julgando 10 dos 14 pedidos de importação feitos à agência até agora por Estados e municípios brasileiros. A agência também terá de apreciar um segundo pedido de uso emergencial feito pela farmacêutica União Química, que tem um acordo com o Gamaleya para a fabricação da Sputnik V no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil, o presidente da empresa, Fernando Marques, criticou a agência, que negou o primeiro pedido por falta de informações e até hoje cobra da União Química dados que considera essenciais para analisar a segunda solicitação. "Você já ouviu falar em pêlo no ovo? Pêlo no ovo", disse Marques.
O relator dos pedidos de importação, o diretor Alex Campos, seguiu a recomendação dos seus gerentes e votou contra a permissão de importação.
Diante das "algumas certezas e do mar de incertezas" sobre a vacina russa, disse Campos, a liberação da sua importação poderia gerar prejuízos no combate à pandemia porque sua aplicação "pode gerar nas pessoas uma falsa sensação de segurança, contribuindo para o aumento das taxas de infecção".
O relator fez questão de ressaltar que a Anvisa já flexibilizou diversos critérios para a aprovação de vacinas, mas que abrir mão do "mínimo possível" seria "antiético e irresponsável".
"Estamos falando da vida das pessoas. Diante da incerteza e do risco, temos que invocar a precaução", disse Campos, ressaltando que seu voto contra a importação pode mudar caso sejam apresentados novos dados
Neste momento, a diretoria da agência debate sobre os dados apresentados. A expectativa é que os votos sejam divulgados em seguida.
A BBC News Brasil explica a seguir os principais pontos preocupantes apontados pela agência até agora.
Vírus usados na vacina não deveriam se replicar, mas fazem isso
A Sputnik V usa uma tecnologia conhecida como vetor viral não replicante, que já é pesquisada há décadas pela indústria farmacêutica e é a mesma da vacina de Oxford.
Esse tipo de vacina usa outros vírus inofensivos para simular no organismo a presença de uma ameaça mais perigosa e que se deseja combater para gerar uma resposta imune.
No caso da vacina russa, ela é feita com adenovírus que causam resfriados em humanos. Eles foram modificados para não serem capazes de se replicar depois que entram nas células humanas.
Os cientistas inseriram neles as instruções genéticas para a produção de uma proteína característica do novo coronavírus, a espícula. Uma vez injetados no organismo, eles entram nas células e fazem com que elas passem a produzir e exibir essa proteína em sua superfície.
Isso alerta o sistema imunológico, que aciona células de defesa e, desta forma, aprende a combater o Sars-CoV-2, o que protegerá uma pessoa se ela for infectada pelo vírus.
O problema, segundo a Anvisa, é que os adenovírus usados na vacina conseguem se replicar. De acordo com Gustavo Mendes, durante o processo de cultivo desses vírus em laboratório, eles recuperaram essa capacidade de multiplicação.
"Isso foi detectado em todos os lotes apresentados. Isso não foi justificado nem é aceito quando comparamos com as recomendações internacionais nem com outras vacinas de adenovírus ", disse o gerente-geral.
Mendes ressaltou que, uma vez aplicado com a vacina, esses vírus podem se multiplicar e se acumular em partes do corpo, o que pode gerar prejuízos à saúde.
"A estratégia correta seria desenvolver um estudo sobre o potencial impacto disso", explicou o relator Alex Campos.
Mas o Gamaleya não fez pesquisas para estudar esses efeitos. Com isso, "perguntas cruciais não foram respondidas" sobre a segurança da vacina, afirmou Mendes.
Os dados sobre a resposta do sistema imunológico não são confiáveis
Os estudos feitos na Rússia atestaram que a vacina Sputnik V gera uma resposta do sistema imune, algo essencial para que ela funcione. Mas a análise feita pelos cientistas do instituto russo a esse respeito tem "sérias limitações", explicou Gustavo Mendes.
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"A forma como os anticorpos são quantificados tem que seguir uma metodologia científica. Se o método usado pelo equipamento utilizado para isso estiver errado, pode-se chegar a uma conclusão equivocada", explicou o gerente-geral.
A Anvisa não conseguiu validar essa metodologia. Por isso, "não temos como confiar" nos resultados apresentados, disse Mendes.
Houve falhas no monitoramento de eventos adversos
Os dados das pesquisas conduzidas pelo Gamaleya aponta que houve eventos adversos graves em 68 participantes, em um universo de mais de 21 mil, além de 4 mortes. Os cientistas responsáveis concluíram que eles não foram causados pela vacina, mas a Anvisa disse que houve falhas na forma como essa parte do estudo foi conduzida.
Os técnicos da agência não conseguiram verificar se os participantes foram instruídos corretamente sobre como registrar esses eventos, e como eles eram relatados.
Os casos de eventos adversos graves não foram descritos, e houve casos em que a causa do problema enfrentado pelo voluntário não foi investigada adequadamente, segundo a Anvisa.
Além disso, só um evento adverso de interesse especial (com potencial de ser relacionado à vacina e que deve ser acompanhado com cuidado) foi registrado no estudo.
"A gente sabe que as vacinas de adenovírus têm eventos de interesse especial que precisam ser monitorados. Neste caso, não vimos nenhum ser elencado, a não ser o agravamento da covid por causa da vacina. Isso faz com que a atenção que foi dada à segurança dessa vacina traga sérios problemas regulatórios", disse Gustavo Mendes.
Houve falhas na análise da eficácia
Os testes na Rússia apontaram que a vacina russa tem uma eficácia de 91,6%, mas, de acordo com a agência brasileira, houve problemas no desenvolvimento e na condução das análises realizadas a esse respeito.
Gustavo Mendes explicou que a Anvisa segue os guias do Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH, na sigla em inglês) e da Organização Mundial da Saúde.
"Todo estudo tem que ter uma proposta de como isso será realizado e essa proposta tem que ser aplicada a todos os participantes", disse o gerente-geral.
Mas não foi definido na pesquisa russa um método padrão para a coleta de amostras para fazer testes de covid-19 nos participantes, ou quais seriam os sintomas a serem monitorados. Também não ficou claro quais as orientações dadas aos voluntários sobre quando deveriam fazer esse testes.
"Não se pode excluir a possibilidade que tenham ocorrido casos de covid que foram considerados negativos, mas que, na verdade, eram positivos", disse Mendes.
Há falhas no controle de qualidade da fabricação da vacina
Gustavo Mendes explicou que não basta uma fabricante provar que uma vacina funciona, é preciso depois garantir que as doses foram produzidas corretamente.
"Não se caracterizou a realização de testes fundamentais para garantir a qualidade dos lotes", disse Mendes.
O técnico também explicou que todos os estudos clínicos da vacina foram feitos com doses fabricadas em laboratório, e não com vacinas feitas nas instalações que são usadas para produzir o imunizante que é aplicado na população.
A mudança da fabricação para escala industrial pode afetar a qualidade do produto, e teriam que ser apresentados estudos para atestar que o produto que sai das fábricas é comparável ao que foi feito em laboratório.
"Não dá pra saber se os lotes usados no estudo têm a mesma eficácia dos lotes que serão enviados ao Brasil", disse Mendes.
A Anvisa também destacou que a fabricação da vacina é terceirizada a fábricas que seguem os padrões de qualidade estabelecidos pelo Gamaleya, e não os padrões determinados por guias internacionais. Por isso, a agência não consegue validar os resultados dos testes de qualidade e verificar se eles são confiáveis.
Em uma das duas fábricas na Rússia visitadas pela equipe da Anvisa, foram encontrados problemas que afetam a garantia de esterilidade da vacina, ou seja, que ela não contém bactérias ou fungos.
"Não adianta ter um processo de fabricação validado que me gere um produto fora do padrão de qualidade requerido", reforçou Ana Carolina Araújo, gerente-geral de inspeção e fiscalização sanitária.
"A empresa precisaria adotar medidas de mitigação de risco de forma imediata."
A Anvisa não teve acesso ao Instituto Gamaleya
Araújo informou ainda que a agência brasileira precisou remarcar algumas vezes as visitas às fábricas usadas para fazer as doses da Sputnik V que seriam importadas.
Ela ressaltou inclusive que, quando a equipe da Anvisa já estava na Rússia, a agência foi informada que não poderia ser feita a visita ao Gamaleya, onde é feito o controle de qualidade da Sputnik V.
"Disseram que, por se tratar de um órgão de governo, ia precisar de uma autorização especial, e nossa inspeção foi negada", disse a gerente-geral.
Araújo esclareceu que houve uma reunião com representantes do instituto, na qual foram apresentados dados e informações.
"Encontramos algumas deficiências, como já foi demonstrado", disse a técnica, acrescentando que, como não foi possível fazer a visita, a Anvisa não conseguiu verificar as instalações do instituto nem discutir com os cientistas russos "parâmetros críticos" da vacina.
"A palavra que define a visita à Rússia é frustração", disse o relator Alex Campos.