USP e Oxford estimam que 76% da população de Manaus já tinha sido exposta ao vírus em outubro
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USP e Oxford estimam que 76% da população de Manaus já tinha sido exposta ao vírus em outubro

Pelos menos 31% das pessoas que tiveram Covid-19 em Manaus , em janeiro deste ano, foram casos de reinfecção pela variante P.1, afirma um estudo realizado por pesquisadores do instituto de Medicina Tropical da USP e da Universidade de Oxford.

Segundo o artigo, em outubro de 2020, 76% dos habitantes de Manaus já tinham sido expostos ao vírus, e 87% de todas as infecções na segunda onda da epidemia na cidade teriam sido causadas pela variante P.1.

O trabalho, liderado pelos cientistas Ester Sabino (USP) e Nuno Faria (Oxford), foi feito com base em amostras de 238 doadores de sangue na cidade. Entre os critérios, foram selecionados aqueles que tinham feito três ou mais doações, com uma durante a primeira onda (antes de julho) e pelo menos uma entre janeiro e março deste ano.

Em artigo "pré-print" (ainda sem revisão independente), o grupo descreve como os anticorpos, moléculas do sistema imune, reagiam a testes de anticorpos em cada amostra. A partir daí, determinou quais tinham sido infectados pela P.1 e inferiu quais dos doadores tinham probabilidade de ter sido infectados mais de uma vez, baseados na força da resposta imune.

Usando essa técnica de análise indireta, os pesquisadores descrevem um cenário preocupante.

"Nossos dados sugerem que a reinfecção pela P.1 é mais comum e mais frequente do que tinha sido detectada por métodos tradicionais de vigilância genômica, molecular e epidemiológica de casos clínicos", escrevem os cientistas.

Por estimar número altos de prevalência da Covid-19 em 2020, porém, o grupo da USP e de Oxford atraiu críticas por parte de cientistas locais de Manaus. Como essa proporção de infectados (87%) colocaria Manaus num suposto estado de "imunidade de rebanho" contra a Covid-19, ainda no ano passado os números da USP acabaram sendo usado politicamente na região. Vereadores, deputados e comerciantes argumentaram que a cidade já estava protegida do vírus àquela altura e não precisava se retrair em medidas de distanciamento social.

A reabertura que se seguiu determinada pela prefeitura e pelo governo só cessou quando os casos e mortes por Covid-19 explodiram na cidade, em janeiro. Naquele mês o sistema de saúde da cidade entrou em colapso, e a variante P.1, altamente contagiosa, já estava circulando.

Para o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazonas, a variante P.1 é mesmo muito preocupante e tem causado reinfecções, mas não explica por si só a dimensão da segunda onda em Manaus , quando a cidade supostamente estaria acima do limiar de imunidade coletiva.

Orellana diz que os cientistas da USP/Oxford superestimaram a extensão da epidemia ao adotar apenas doadores de sangue como parte da amostragem de seus estudos. Segundo ele, nos primeiros meses da epidemia, bancos de sangue em Manaus tiveram procura maior porque ofereciam acesso fácil a testagem para coronavírus. Isso cria um viés em que um número maior de pessoas contaminadas se oferece para doação, e distorce as estatísticas. Um médico não envolvido na controvérsia afirmou à reportagem que um efeito similar ocorreu no Brasil no início da epidemia de HIV na década de 1980.

Para o infectologista Marcus Lacerda, também da Fiocruz Manaus, os estudos do grupo da USP /Oxford tiveram um desenho que pode ter inflado o número de prevalência da doença na cidade por outros motivos.

"Doadores têm uma faixa etária que não representa Manaus inteira, excluindo crianças e idosos. E, além disso, quem doa sangue em geral é de classe média ou baixa, e isso também restringe a população analisada", explica o cientista.

"Outra coisa é que eles alteraram o ponto de corte do teste usado no estudo. O teste tinha uma sensibilidade determinada, e eles acabaram reduzindo. Isso resultou em colocar como positivo um grupo de pessoas que provavelmente não tinha IgG, ou seja, não tinha anticorpo contra Covid-19", completa.

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Lacerda também destaca que nem todos aqueles que possuem anticorpos estão necessariamente protegidos. Mas ele é menos duro que Orellana nas críticas, e afirma que o estudo da USP foi uma ideia interessante para inferir a prevalência da Covid-19 na capital amazonense.

"O estudo tem limitações, como todos os estudos têm", diz. "Eu acho que o problema é que as pessoas não estão interpretando os dados brutos."

Orellana, por outro lado, destaca um sinal importante de que as estimativas de prevalências feitas pelo grupo da USP/Oxford estariam altas demais: um levantamento feito no público geral com testes rápidos pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em Manaus chegou a números mais modestos. Em junho, quando a UFPel estimava prevalência da Covid-19 de até 14% na cidade, o grupo da USP/Oxford apontava um número de 52%. Ele sugere que a dinâmica da epidemia em Manaus é mais bem explicada por um número menor de prevalência no meio do ano passado e por uma interferência menos perturbadora da P.1 neste ano.

Os primeiros estudos de Sabino e Faria sobre o tema foram publicados na revista Science, uma das mais disputadas do mundo, e ainda em 2020 recebeu algumas críticas, às quais o grupo vêm respondendo. A cientista da USP afirma que foram tomados cuidados nos estudos originais para controlar distorções e que as aplicações de teste seguiram as recomendações do fabricante.

"Também descontamos a taxa de falso positivo. Fizemos, sim, vários testes usando vários cortes diferentes (...). Todos bateram o mesmo valor. A gente fez outros modelos para corrigir a queda de anticorpos e bateu a mesma (estimativa)."

Sobre a reabertura da capital, seguida pelo aumento no número de casos e mortes, a pesquisadora disse que o estudo só saiu na Science cerca de três semanas após a reabertura. (uma versão anterior tinha sido divulgada com pré-print ainda em 2020.)

Ester e coautores afirmam que o estudo foi mal interpretado fora da academia e disse que nunca sugeriu que a epidemia estaria controlada pela imunidade coletiva em Manaus .

"Comunicar a ciência é muito difícil. Na verdade, o nosso trabalho saiu como "taxa de ataque", e não como "imunidade de rebanho". Podia ter mudado o título. Na época, não pensei que o pessoal ia entender olhando o título daquela forma. Mas não acho que esteja errado o que a gente fez. Isso não está dizendo que acabou a epidemia em nenhum momento, e está bem claro no nosso texto isso", ressalta Sabino. "Acho que seria muito errado se eu não falasse para a população que a gente tinha achado uma prevalência tão alta em Manaus, porque agora dá o contexto para saber que eles podem pegar Covid-19 uma terceira vez também."


A professora também lamentou o tratamento de colegas cientistas:

"Acho muito agressiva a forma como alguns pesquisadores da Fiocruz falam conosco porque eles sabem a dificuldade que é fazer estudo e sabem da seriedade", afirma. "A Science não é uma revista de botequim. Acho que a gente foi muito cauteloso, e a gente escreveu para cientistas. Eu sei escrever para cientistas. Nunca escrevi pensando em escrever para jornal."

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