Erguido há quase um século para ser um colégio, o prédio onde funcionava a Escola Municipal República Argentina, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, começa a abrigar a partir de hoje um outro tipo de aprendizado. Passará a funcionar no prédio de 1922, ainda em reforma, o Centro Multidisciplinar para Tratamento Pós-Covid-19 do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
O centro terá dimensão nacional e fará atendimento no SUS, via Central de Regulação, além de pesquisa básica e clínica a respeito de temas como impacto das vacinas, os componentes genéticos que tornam algumas pessoas mais vulneráveis ao coronavírus Sars-CoV-2 e fatores que levam à síndrome pós-Covid-19.
Com o surgimento de sequelas pós-Covid, o SUS tem sido pressionado na demanda por tratamento — no Rio, a fila por algumas especialidades dobrou de janeiro a abril.
"Pense que só 20% dos infectados pelo coronavírus adoecem com algum grau de gravidade. Por que essas pessoas? Existem comorbidades, mas há fatores genéticos e de resposta do sistema imunológico que certamente fazem diferença de vida e morte.
Temos analisado a resposta celular de sobreviventes e de vítimas da chamada síndrome pós-Covid-19 em busca de respostas", afirma Luis Cristóvão Porto, coordenador do Laboratório de Histocompatibilidade e Criopreservação do Hupe.
Entre as pesquisas em andamento, está o sequenciamento genético de amostras de pacientes em busca de alterações associadas à vulnerabilidade.
Porto e seus colegas se preparam para ampliar o estudo e o atendimento ao que a infectologista Anna Caryna Cabral, chefe da Unidade de Doenças Infecciosas Parasitárias do Hupe, chama de “epidemia invisível”. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 10% de todas as pessoas que tiveram Covid-19 desenvolvam a síndrome pós-Covid-19.
No Brasil de hoje, esse número ultrapassa 1,6 milhão de pessoas. São indivíduos acometidos por uma diversidade de sintomas tão grande — mais de 50 já foram observados e a lista só cresce — que seus casos parecem isolados.
"Mas não são. Há uma multidão precisando de assistência. Vamos atender os nossos ex-pacientes de Covid-19 e também os de fora. Sabemos que há uma colossal demanda reprimida de gente que precisa de ajuda para recuperar uma vida minimamente normal. Aqui oferecemos mais de 40 especialidades médicas associadas à pesquisa universitária. Temos certeza de que isso fará diferença", destaca o diretor do Hupe, Ronaldo Damião.
O coordenador médico do Hupe, Rui Figueiredo Filho, afirma que uma das linhas de pesquisa é identificar os sintomas mais comuns e se existe um padrão que permita diagnosticar e tratar com mais eficácia a síndrome pós-Covid-19.
Prioridade a quem deixou UTI
O centro começa com 50 atendimentos/dia, mas pretende chegar a 300. Também está no horizonte o treinamento de profissionais de saúde de outras unidades — e, caso consiga mais mão de obra, a ampliação das atividades, diz Ronaldo Damião.
O grupo prioritário de atendimento são 35 mil sobreviventes de Covid-19 grave só na cidade do Rio, diz Paulo Benchimol, coordenador do novo Ambulatório Pós-Covid-19.
"E isso se forem consideradas apenas os internados em UTI. Mas sabemos que mesmo pacientes que não chegaram a apresentar um quadro grave podem apresentar complicações, às vezes piores do que a própria Covid-19. Planejamos funcionar em rede nacional de pesquisa porque muitos casos são um completo mistério", acrescenta ele.
Acostumada a socorrer pacientes graves de Covid-19 todos os dias desde março de 2020, a infectologista Anna Caryna Cabral se surpreende com essa nova face da pandemia. Há jovens que perderam a fertilidade e a vida sexual, homens de 40 anos que davam uma volta correndo na Lagoa, mas agora não conseguem andar nem para levar os filhos pequenos à escola. Há mulheres cujos cabelos caíram. Muita gente que perde a memória e não se lembra nem do nome de amigos. E casos extremos, que incluem infartos e AVCs.
O centro vai atender ex-pacientes do Hupe, como Jesica Santos, de 34 anos, grávida de 36 semanas. Ela passou dez dias internada e agora voltou em busca de atendimento para uma série de desconfortos. Jesica sobreviveu, mas perdeu para o coronavírus tios e primos.
O caso dela é investigado já que, segundo os pesquisadores, até diferenciar sequelas do ataque direto do vírus das decorrentes da inflamação generalizada é um desafio.
"Um paciente pode apresentar uma série de complicações, aparentemente não relacionadas", diz Rejane Araújo de Souza, coordenadora de Enfermagem do Hupe.