Pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (Inca) participaram de um estudo internacional que buscava entender quais são as principais mutações sofridas por células do esôfago que desenvolvem o câncer neste órgão. Os resultados brasileiros mostram que o consumo excessivo de álcool é capaz de deixar marcas físicas nestas células, o que pode ocasionar um carcinoma epidermoide, o tipo de tumor mais frequente nesta área do corpo. O trabalho confirma que bebidas alcoólicas podem sim provocar alterações genéticas em seres humanos. O artigo final foi publicado na renomada revista científica Nature Genetics.
Os resultados encontrados pelo grupo de pesquisadores do qual fazem parte Luis Felipe Ribeiro Pinto, chefe do Programa de Carcinogênese Molecular e coordenador de pesquisa do Inca, e Sheila Coelho Soares Lima, chefe do setor de Epigenética da instituição, podem ajudar a desenvolver — num futuro próximo — um exame de sangue capaz de apontar quem deve ou não investigar um possível câncer de esôfago.
Atualmente, o diagnóstico precoce deste tipo de tumor é extremamente raro. Isso ocorre, porque os sintomas só começam a surgir quando a doença está em estágio avançado — os pacientes costumam procurar ajuda quando já não conseguem comer ou ingerir líquidos adequadamente. O perfil dos brasileiros acometidos por essa doença é de homens que consomem álcool excessivamente (cerca de 500 ml de cachaça todos os dias) e fumam com frequência ou então que tomam bebidas com temperaturas elevadas frequentemente.
O descoberta tardia da doença diminui drasticamente o prognóstico dela: apenas 15% dos pacientes com câncer de esôfago estão vivos cinco anos após o diagnóstico. Este é o sexto tipo de câncer mais frequente em homens brasileiros, com cerca de 11.300 novos casos por ano (76% são do sexo masculino) e 8.700 mortes anuais (das quais 78% são de homens).
A análise dos pacientes brasileiros faz parte do projeto Mutographs, liderado pela Agência Internacional para Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde (IARC/OMS) e pelo Instituto Sanger do Reino Unido, que conta com um grupo de cientistas de dez países. Foram examinados 552 genomas de pacientes com câncer de esôfago de oito nações (Brasil, China, Irã, Japão, Quênia, Malawi, Reino Unido e Tanzânia) durante cinco anos.
O objetivo era entender quais são os mecanismos que levam ao desenvolvimento deste tipo de tumor. Dados epidemiológicos mostram que, no Brasil, a doença está associada ao consumo de álcool — o que foi confirmado no estudo —, cigarro e bebidas em altas temperaturas, como o chimarrão, sendo predominante em homens. Mas em outros países, não havia até então informações sobre as possíveis causas do tumor e nem explicações sobre a indiferença no sexo dos afetados.
As análises genéticas das células tumorais de brasileiros e japoneses apontaram assinaturas mutacionais (marcas genéticas específicas) do álcool. No processo de digestão, o álcool é transformado em acetaldeído, substância tóxica para o corpo humano. É a alta concentração dele que gera mutações genéticas no gene TP53, conhecido como o "guardião do genoma" por seu papel de conservar a estabilidade do DNA, evitando mutações em outros genes. Uma vez modificado, ele perde sua capacidade de vigilância e possibilita o desenvolvimento do câncer.
Enquanto que no Brasil há um alto consumo de bebidas alcóolicas, o que gera excesso de acetaldeído no corpo, no Japão, a alta concentração da substância tóxica se dá por um defeito genético característico da população asiática.
"O estudo conseguiu comprovar que o álcool está envolvido na gênese do câncer de esôfago. Descobrimos três assinaturas mutacionais que só existem em pacientes que bebem. Há diferentes teorias de como álcool pode causar o câncer, mas mostramos claramente que o acetaldeído pode provocar mutações no DNA. Apesar de ser considerado um cancerígeno fraco, em altas concentrações ele passa a atuar como um cancerígeno forte", explica Luis Felipe Ribeiro Pinto.
Os pesquisadores observaram outras três assinaturas mutacionais comuns a todos os genomas analisados na pesquisa — incluindo os brasileiros. A primeira alteração está ligada ao envelhecimento precoce, que na avaliação dos cientistas está associada à pobreza. A segunda, está relacionada aos radicais livres causados pela inflamação recorrente do esôfago.
A terceira, está associada à presença da enzima Apobec, uma arma do sistema imunológico ativada quando sofremos com infecções virais. Elas se ligam ao material genético do vírus e causam uma mutação que o impossibilita de se reproduzir. Mas, durante esta ação, ela gera mutações também no DNA humano.
Encontrar a assinatura mutacional desta enzima acendeu mais um sinal de alerta, já que nenhum dos pacientes cujo material genético foi analisado apresentava sinais de infecção viral. Os cientistas acreditam que exista algum mecanismo, que ainda será investigado, que ative esta ação sem a necessidade da presença de um vírus.
Resquícios dessas quatro mutações podem ser encontradas no sangue de pessoas com câncer de esôfago antes mesmo de os primeiros sintomas surgirem. É a partir desta perspectiva que os cientistas querem desenvolver uma biópsia líquida, um tipo de exame de sangue, capaz de detectar estes sinais. Atualmente, a endoscopia é o primeiro exame feito para o diagnóstico do tumor no esôfago.
Por ser caro — tanto no treinamento de profissionais quanto na compra do equipamento — e o número de pessoas com câncer no esôfago ser pequeno em relação à população suscetível, o custo de rastreamento é muito elevado, principalmente para programas de saúde pública. O exame de sangue seria uma triagem mais rápida e barata, encaminhando para a endoscopia apenas os pacientes que apresentassem algum sinal de mutações genéticas.