Qual é o peso de levantar a bandeira de uma causa sendo um dos maiores jogadores de futebol que representaram o país no século? Em tempos em que se discute a falta de posicionamento de atletas perante a sociedade, Romário foi além: ao se despedir da seleção brasileira em um amistoso contra a Guatemala, ele levantou a camisa amarela para mostrar a mensagem 'tenho uma filhinha down que é uma princesinha'.
Era o pontapé inicial do que viria a ser a carreira pós-futebol do ídolo carioca: a luta pelos direitos das crianças e adultos com deficiência.
Quase nada na vida de Ivy, a filha do craque, foge ao que é comum a todo adolescente. Há 17 anos, porém, o mundo era diferente. O preconceito com a síndrome de down e a falta e informação ainda eram regra. O craque, então, se colocou como porta-voz de milhares de famílias brasileiras — segundo o IBGE, em 2021, o Brasil tinha 300 mil pessoas com trissomia.
Neste 21 de março, Dia Internacional da Síndrome de Down e primeira vez que a data é celebrada oficialmente no calendário brasileiro , Romário relembra, em entrevista exclusiva ao iG Saúde , o nascimento da filha e compartilha episódios emocionantes nessa trajetória. Confira.
iG Saúde: Como o senador recebeu a notícia de que a Ivy tinha Síndrome de Down?
Romário:
Quando ela nasceu, me comunicaram que ela tinha algum tipo de deficiência. Eu estava lá e eu vi, só que eles não souberam dizer qual era o tipo de deficiência. Logo depois de duas horas, eles identificaram a Síndrome de Down.
A Ivy foi a minha sexta filha, realmente foi um nascimento bem diferente dos outros. Foi uma maneira, por parte dos médicos, estranha de dar a notícia. Foi uma surpresa muito grande, não posso dizer que foi triste nem alegre, foi uma surpresa diferente.
Tratamos ela com mais atenção, mas igual aos meus outros cinco filhos. A minha relação com os seis é exatamente igual e o carinho, o amor que os outros têm por ela me faz muito feliz.
Quando ela faz m***, os irmãos brigam com ela. Quando ela faz uma parada maneira, os irmãos dão um beijo nela. É uma relação recíproca e verdadeira, de carinho, de amor, de fidelidade.
Claro, nossa condição financeira também é diferente de mais de 90% do país e isso nos dá a condição de dar a eles o que eles precisam. Ela está sendo acompanhada desde o segundo mês de vida, ainda vai ao fonoaudiólogo, tem um personal trainer. O tratamento e a criação dela são muito tranquilos.
iG Saúde: Você acha que hoje a sociedade está mais aberta a enxergar mais a pessoa do que a deficiência?
Romário:
Cara, eu acho não, eu tenho certeza. Há 17 anos, quando a Ivy nasceu, existia um preconceito muito grande das pessoas com deficiência. E os familiares dessas pessoas com deficiência tinham até vergonha de mostrar pra sociedade seu filho, seu irmão…
Ao longo desses anos as coisas evoluíram muito positivamente. As pessoas estão hoje com uma mentalidade muito diferente do que elas eram quando a Ivy nasceu. Na minha concepção, não só de pai, como também de político, uma pessoa com Síndrome de Down não é mais vista como doente, mas com uma deficiência. Hoje esse entendimento é superpositivo, você vê em muitas Câmaras Municipais do nosso país, muitas Assembleias [Legislativas], muitas empresas onde essas pessoas com síndrome de down trabalham.
Eles se tornam modelos, surfistas, há Olimpíadas de pessoas com Síndrome de Down. Hoje, graças a Deus e aos pais, aos nossos esforços, das pessoas que levantaram essa bandeira, a Síndrome de Down é, junto com o autismo, uma das deficiências mais conhecidas do brasileiro. A convivência com essas pessoas fazem com que os outros tenham esse entendimento.
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iG Saúde:
Como foi homenagear a Ivy durante o jogo da seleção? Foi um gesto muito importante.
Romário:
Aquele gesto foi muito positivo para que o movimento fosse o que é hoje para os nossos filhos. Quando eu tive a Ivy, eu jogava no Vasco. Lembro que um amigo que jogava comigo no Vasco, e outro que tinha jogado comigo no Flamengo, vieram me pedir desculpas por terem escondido seus filhos com Síndrome de Down. Me pediram desculpas e disseram que ter uma filha com Síndrome de Down era uma coisa que eles podiam ter assumido, mas ficaram escondidos. E assim, depois dessas palavras, eu tive bastante certeza que ali começaria um movimento diferente pra esse segmento.
Eu entrei na política por causa da Ivy. Quando eu parei de jogar futebol, fiquei quatro anos praticamente sem fazer nada. E até hoje essa bandeira de deficientes e pessoas com doenças raras me movem na política. A minha relação com os políticos e com o povo brasileiro — com quem eu não perdi minha idolatria —, vem da bandeira que eu defendo. Pra muitos, essa bandeira não tem a visibilidade que deveria ter, mas eu que estou aqui dentro sei que deveria ter. Não se demonstra, não aparece, mas tem.
São 12 anos de política, quatro como deputado, oito como senador e vem a reeleição agora. Dando um exemplo, se eu tenho 100 projetos, 70 são relacionados e direcionados a essas pessoas com deficiência, pessoas com doenças raras e pessoas com algum tipo de problema que a sociedade não consegue enxergar. O nanismo, por exemplo, as pessoas brincam com isso. Elas me procuraram e disseram que não eram respeitadas, que gostariam do dia nacional do nanismo. A mesma coisa com o Lúpus.
iG Saúde: Como você vê a Ivy? A vida adulta, terceira idade…
Romário:
A Ivy é uma pessoa muito objetiva, confiante, determinada. Ela chega a ser até chata pra conseguir as coisas que ela quer. Vou te dar um exemplo: vai ter um show de um grupo chamado Now United. Ela sabe o nome de todos os 18 integrantes, e falou que eles vinham tocar aqui no Rio, que queria ir. Faz dois meses que eu e minha namorada ouvimos todos os dias ela falar desse show. "Cadê o ingresso, cadê o ingresso?".
Foi aniversário dela e eu dei um celular novo. Ela agradeceu, me deu um beijo e falou "cadê os ingressos?". Creio que, na maioridade dela, ela vai ter algumas dificuldades, decepções... normal. Para conviver com a Ivy é preciso entender que não é porque ela tem Down que ela vai fazer o que as outras pessoas querem. Vai ser assim? Como pai eu quero que seja assim, me parece que vai ser assim.
iG Saúde: Na sua opinião, a legislação no Brasil é cumprida de maneira efetiva?
Romário:
Não, ela não é cumprida nem um pouco de maneira efetiva e como ela realmente tem que ser. Esse é um dos gargalos que a gente tem que ter na nossa Justiça porque, se a lei está lá, é porque ela tem que ser cumprida. E a Justiça não faz elas pagarem.
iG Saúde:
O ministro Milton Ribeiro já deu declarações contrárias à inclusão de crianças com deficiência em salas de aulas comuns. Como é a sua relação com ele e como você avalia o trabalho à frente da pasta?
Romário:
Ele foi muito infeliz ao dizer o que ele disse e, claro, ao responder o ministro, não fui o senador Romário. Não era nem o cidadão brasileiro. Era o pai. Ali foi o pai que mostrou pra ele que aquela fala estava sendo preconceituosa, discriminando as pessoas com deficiência. Por isso a gente teve um entrave. Mas aí, tive a oportunidade de ir lá no ministério. Ele se desculpou, inclusive publicamente, e disse que o objetivo da fala dele não era esse. E resolvemos o problema.
Eu não vejo atitudes do MEC naquele sentido, porque são diferentes as coisas que o ministro fala e as coisas que o MEC faz. O que ele falou, ele pode até pensar, mas me pediu desculpas e disse que a fala saiu diferente do que ele pensava. E vamos relevar. Partindo desse princípio, não vejo esse preconceito vindo do MEC.
Minha filha estuda em colégio que todo mundo estuda e os amiguinhos dela são amigos em todos os sentidos. É claro, em um grupo de mais de 30 pessoas pode haver um pai, uma mãe, um irmão com o pensamento diferente sobre estudar com alguém deficiente, mas é uma coisa muito rara. Esse convívio é saudável.
iG Saúde: Quais os cuidados que as crianças com Síndrome de Down exigem, quais são os acompanhamentos que a Ivy tem até hoje, além do acompanhamento físico, emocional, indicados desde que as crianças nascem?
Romário:
Mesmo separados, eu e a mãe da Ivy sempre tratamos ela da mesma forma como tratamos os outros. É claro que os pais têm que ter uma atenção diferencial comparado aos filhos que não têm a deficiência, é uma coisa que teremos sempre. Mas a Ivy já está falando em namorar. Na nossa cabeça, quando a Ivy casar, se ela não morar com o pai e a mãe, ela vai morar perto, porque é da gente que ela precisará quando brigarem, por exemplo. A Ivy pode até namorar com um rapaz com Down, ela tem muito contato com eles. Vai ser diferente dos outros filhos. Então nós temos que estar ali sempre pertinho para dar uma mão. Não é ser machista ou pai coruja, é dar uma atenção diferenciada.
iG Saúde: O que você gostaria de dizer para a sociedade brasileira neste dia 21 de março?
Romário:
Obrigado, sociedade, pelo entendimento. Hoje é muito diferente da pessoa que tem Síndrome de Down se comparado há 17 anos. Muito obrigado, sociedade, por dar o espaço que essas pessoas merecem, devem e podem ter. Obrigado, sociedade, por entenderem que essas pessoas podem e devem ser abraçadas por todos.
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