O pesquisador brasileiro Tulio de Oliveira, líder de pesquisas sobre a Covid na África do Sul
Reprodução
O pesquisador brasileiro Tulio de Oliveira, líder de pesquisas sobre a Covid na África do Sul

Durante a pandemia de Covid-19, os olhos do mundo se voltaram duas vezes para a África do Sul. Foi lá que cientistas identificaram a variante Beta do Sars-Cov-2, em dezembro de 2020, e, quase um ano depois, alertaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) do crescimento vertiginoso da Ômicron.

Por trás dessas descobertas, estava um brasileiro de leves escorregões no sotaque: o pesquisador Tulio de Oliveira. À frente da vigilância genômica do KRISP, laboratório ligado à Universidade de KwaZulu-Natal, o bioinformático acredita que o cruzamento de dados de saúde fará a diferença nas próximas epidemias.

Nascido em Brasília, Tulio mora no país africano desde 1997, quando sua mãe foi trabalhar lá. Foi onde ele aprofundou seus estudos de bioinformática, ramo que usa ferramentas de dados para compreender dados biológicos. Os dotes de rastreador de vírus renderam a ele não apenas os créditos da identificação de duas variantes de preocupação (VOC, em inglês) do coronavírus. Motivou também sua inclusão em duas listas de prestígio em 2022, a dos dez cientistas de renome da revista científica Nature e das cem pessoas mais influentes do mundo da Time.

Em entrevista ao GLOBO durante uma passagem pelo Brasil, entre mergulhos no mar de Paraty, o pesquisador falou sobre as variantes que provocam novos surtos de Covid-19 hoje, e antecipou os próximos passos da pandemia. Ele também defendeu que a varíola dos macacos seja monitorada de perto para não incorrermos outra vez em velhos erros.

Devemos nos preocupar com a atual onda de Covid?

A BA.4 e a BA.5 estão dominando as infecções no mundo porque conseguem driblar a imunidade e reinfectar pessoas que foram vacinadas ou infectadas com outras linhagens. Mas é uma nova onda que começou com hospitais e UTIs vazias. São principalmente casos de reinfecção, por isso não estamos vendo tantas mortes na África do Sul. O mesmo resultado, transmissão alta de BA.5 e poucas mortes, também foi visto em Portugal.

Você acredita que a pandemia não voltará a recrudescer com as próximas cepas?

Essa é a pergunta que todos fazem e a verdade é que a gente não sabe. O fato é que, como vieram a BA.4 e a BA.5, outras linhagens vão aparecer. E esse vírus já nos surpreendeu muitas vezes. É muito difícil prever a agressividade das variantes. Não esperávamos que a população precisaria de um reforço, que chegaríamos a uma quarta dose para a população mais idosa. Descobrimos, por exemplo, que a proteção é mais efetiva quando misturamos vacinas diferentes. E que a resposta imune é a melhor se você é vacinado um mês depois de uma infecção. Mas sabemos que a taxa de imunidade maior da população fará diferença nas próximas ondas.

O Brasil estava especialmente despreparado para a pandemia?

Infelizmente, a pandemia foi um descontrole em todos os lugares. O Brasil errou mas também teve acertos. Começou a vacinar muito mais rápido que a África do Sul, apesar de tudo. Conseguiu bons resultados na colaboração do Butantan com a CoronaVac e a Fiocruz com a AstraZeneca. Mas o mundo inteiro estava despreparado.

E como estamos em termos de pesquisa genética? Avançamos com essa experiência?

O Brasil está bem desenvolvido na parte da pesquisa genômica. Avançou muito nas epidemias de zika, chikungunya e febre amarela. O principal problema na pandemia foi que o país não conseguiu montar uma rede organizada para conectar os dados de diferentes núcleos de pesquisa. Foi o que a África do Sul e a Inglaterra fizeram e por isso conseguiram se sobressair nesse campo. Como a Covid é uma infecção muito transmissível, essa rede precisa atuar de forma muito rápida. No meu departamento a gente produz dados toda semana, dias após a coleta de amostras, e manda relatórios para o governo.

É muito diferente da realidade do seu trabalho no continente africano?

O Brasil conta com bons trabalhos na Fiocruz e no Butantan. Mas a rede não estava se falando. A Covid exige que os resultados sejam muito rápidos. O meu laboratório, o CERI, faz o sequenciamento de amostras de 21 países africanos, realiza treinamento em 30 e é um dos grandes laboratórios especializados da Africa. Hoje o continente conta com três grandes laboratórios especializados em genômica, na Nigéria, na África do Sul e no Quênia. Os três laboratórios especializados apoiam 12 laboratórios regionais e 55 nacionais em todos os países da África. O continente africano investiu muito na parte genômica pois, além de Covid, abriga muita outras epidemias. Agora a América Latina, com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), está copiando o modelo da África.

Sua atuação na África do Sul permitiu a identificação de duas variantes de preocupação. Como é esse trabalho?

Eu fundei o laboratório KRISP, ligado à Universidade KwaZulu-Natal, seis anos atrás. Mas recentemente decidi me mudar de Durban para a Costa Oeste, para criar um instituto novo, o CERI, numa universidade mais rica e num lugar mais bonito, onde é mais fácil atrair talentos. Trabalhamos em três áreas. Uma é a genômica de doenças como HIV, tuberculose, febre amarela, zika e dengue. Também produzimos genomas humanos, e fazemos a análise de dados de epidemiologia. Trabalhamos com análise temporal e espacial para detectar focos de infecção e identificar epidemias.

Foi assim que vocês conseguiram identificar as variantes Beta e Ômicron?

Sim. A Beta veio de relatos clínicos de médicos da nossa rede que nos alertaram. Já a Ômicron detectamos quando percebemos uma súbita alta de casos concentrados em uma mesma área. São dois campos, o clínico e a análise de dados, que se ajudam mutuamente. No Brasil, infelizmente as redes não estão integradas nesse sentido para atuar em epidemias. O país tem um potencial enorme para isso, mas o financiamento em pesquisa durante a pandemia foi muito baixo. Quando detectamos os primeiros casos de Covid na África do Sul o governo liberou US$ 3 milhões para rede de genômica e mais de US$ 20 millhões para pesquisa em Covid. 

A próxima geração de vacinas ajudará no controle da pandemia?

Os estudos que estão em curso são no sentido de criar vacinas bivalentes, que funcionem para a cepa original e para outras posteriores. É nesse sentido que caminham as da Pfizer, com a Beta, e a Moderna, com a Ômicron. Porém, o que vimos com o Sars-CoV-2 é que a velocidade de aparecimento de variantes é muito grande. O que devemos ter em mente é que as vacinas atualmente em uso são extremamente eficientes para evitar quadros mais graves. E que as reinfecções tendem a ser menos agressivas. Claro que o melhor continua sendo não ser infectado.

O que aprendemos com a pandemia para evitar outros eventos do gênero?

O ser humano tem a característica de cometer os mesmos erros, esquecer o que aconteceu e não trabalhar com a prevenção. Estamos vendo agora o crescimento de casos de varíola dos macacos, incidência grande de dengue, alta da chikungunya. À medida que nossos ambientes são destruídos e a população se adensa, é esperado que outros vírus pulem para humanos. Nós não conseguimos prevenir epidemias, mas pandemias são preveníveis.

Você concorda com a visão de que o vírus monkeypox (da varíola dos macacos) é mais controlável por ter mutações mais lentas?

As pessoas falam a mesma coisa do coronavírus, que não muta muito. A varíola dos macacos sofreu mais de 50 mutações que separam as epidemias antigas da atual. O vírus dá sinais de que se adaptou ao hospedeiro humano, ajustou seu comportamento para ser mais transmissível. Os vírus de DNA em geral evoluem mesmo mais devagar. Mas também é preciso ter cuidado e monitoramento.

A Amazônia preocupa especialmente como celeiro de novas epidemias?

Não só a Amazônia, todas as áreas naturais têm esse potencial. Onde existem animais silvestres em isolamento e surge uma área urbana muito perto, temos perigo. O tráfico de animais é muito perigoso, põe vários animais silvestres em contato com os humanos. Nos desastres naturais, como enchentes, queimadas, há dispersão de animais, muitos se aproximam de outras regiões. No Brasil a urbanização em massa levou os arbovírus para as cidades com os mosquitos.

Você recebeu vários prêmios recentemente, como o da Nature e Time. Como essas homenagens impactam no seu trabalho?

Como cientista me sinto muito honrado, mas sei que preciso ficar humilde e com os pés no chão. Se não tiver cuidado um pesquisador pode ficar egocêntrico e perder o foco. A ciência é um trabalho de colaboração, paciência e persistência.

Entre no  canal do Último Segundo no Telegram e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo. Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!