O plano nacional de imunização contra a Covid-19 do governo federal exclui mais da metade dos indígenas do Brasil. De acordo com o documento, entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) no último sábado (12), apenas 45% da população indígena está no grupo prioritário para receber a vacina contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2). Confira aqui o plano completo.
Os dados apresentados pela pasta mostram que serão vacinados 410.348 indígenas. No entanto, de acordo com o último censo demográfico do IBGE, de 2010, a população citada era de 896,9 mil. Sobre o recorte escolhido, o plano diz ainda que contemplam o grupo prioritário: "indígenas com 18 anos ou mais atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SIASI/SESAI)".
Em entrevista ao iG, uma médica sanitarista do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que preferiu não se identificar, afirma que a grande maioria da população atendida pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena vive em terras homologadas ou seja, regularizadas pelo governo federal.
"A pandemia da Covid-19 evidenciou a situação de que há uma parcela da população indígena que não está assistida pelo Subsistema e que também é vulnerável. São os que vivem terras não homologadas e em terras urbanas. A partir desse recorte, podemos afirmar que um grande número não será coberto pela priorização de ter acesso ao imunizante”, explica a médica sanitarista.
Ela complementa ainda que o plano de imunização contra a Covid-19 deveria ter como prioridade todos os indígenas, não só de uma parcela que tem as terras reconhecidas oficialmente. "As ações de enfrentamento da União têm que contemplar todos os vulneráveis, nas aldeias e nas cidades".
Pandemia da Covid-19
Dados levantados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até dezembro de 2020, mostram que mais de 41 mil indígenas foram contaminados pelo novo coronavírus, atingindo mais da metade dos 305 povos que vivem no Brasil, incluindo também o povo Warao, da Venezuela.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena e a Apib divergem em relação aos números de casos e mortes de indígenas por Covid-19. O levantamento da Apib mostra que o número de óbitos de índios é quase o dobro do divulgado pelo governo, 889 ante 496.
"A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas já se encontrava muito fragilizada quando a pandemia chegou ao Brasil e esse foi um fator determinante para o agravamento da situação entre os povos indígenas. Nos meses de abril e maio, quando os casos de contaminação por Covid-19 aumentavam no Brasil, os valores liquidados para a Saúde Indígena sofreram uma queda de R$ 100 milhões em comparação com o mesmo período de 2019", diz trecho do relatório "Nossa luta é pela vida", da Apib.
O documento de 90 páginas faz um balanço do impacto da pandemia entre os índios e conclui que a omissão do governo ao não adotar medidas de proteção aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais "está baseada no racismo institucional, que não deixa dúvidas sobre a sua política genocida", diz relatório. Confira o relatório completo aqui.
Poucas doses de vacina atrapalham o planejamento
A epidemiologista Ethel Maciel, pós-doutora pela Universidade Johns Hopkins e uma das especialistas que participaram da elaboração do plano, explica que as quatro fases de vacinação foram pensadas em um cenário de escasse de doses de imunizantes.
"Parte dos indígenas entraram por uma questão de vulnerabilidade. Ficamos bastante angustiados porque o governo precisa fazer acordo com todas as vacinas disponíveis e não fazer um plano com esse afunilamento", lamenta.
Indígenas devem ter prioridade na vacinação
A médica sanitarista Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende que todos os indígenas sejam vacinados para evitar um novo genocídio.
"Ao longo dos séculos, eles viveram essa mesma situação. Sumiram povos, conhecimentos e línguas, seja por consequência das guerras ou por doenças. Muitos indígenas estão em condições vulneráveis, muito pela distância dos serviços de saúde, mesmo com o Subsistema de Atenção a Saúde do Índio, que tem perdido força e se distanciado do que seria uma boa articulação", explica.
Com as lacunas no sistema de saúde e a grande quantidade de índios infectados com o novo coronavírus, o vírus se espalha com mais facilidade. "Além dessas questões, tem a cultura e o modo de viver, com o compartilhamento de utensílios e a distância das unidades de saúde", diz Sofia.
A coordenadora do Projeto Xingu alerta que, como o vírus é mais perigoso em pessoas mais idosas, o conhecimento da língua, a sabedoria dos rituais e as rezas estão em risco pela alta quantidade de óbitos de índios do grupo de risco. "Para além do genocídios, temos visto um etnocídio, a perda dos conhecimentos. Por essas razões e outras vulnerabilidades, por carregar outras doenças respiratórias e pelas dificuldades de manter a sua própria soberania alimentar, os povos indígenas precisam ser prioritário na vacinação", conclui a médica.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos sobre a imunização dos indígenas no Brasil.