Raiva, alegria, tristeza, amargura, rancor, medo, obsessão, ansiedade e angústia. Essas são apenas algumas das emoções sentidas por quem assiste ao personagem Arthur Fleck, protagonizado por Joaquin Phoenix, no filme "Coringa", do diretor Todd Philips, que está prestes a alcançar US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais.
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Apesar do longa contar a origem de um vilão do universo dos quadrinhos, o modo artístico, simplista e realista de construção de Coringa cativou o público e abriu espaço para debate ao apresentar como momentos conturbados, traumas ou tragédias pessoais podem afetar o corpo, a mente e, principalmente, as relações humanas.
Segundo Patrícia Serfaty, psicanalista que participou de um encontro sobre o tema na Casa do Saber Rio, o filme dá ênfase às consequências do desamparo social. “O ser humano tem necessidade do sentimento de pertencimento, deseja ser reconhecido e precisa sentir-se amado para encontrar seu lugar no mundo”, comenta.
O roteiro aborda questões de isolamento social, uma estrutura hostil de sociedade, ausência da família, falta de perspectiva de futuro e uma estrutura hostil de sociedade e faz com que muitos espectadores saiam pensativos e até, de certa forma, incomodados das salas de cinema.
Tatiana Pimenta, fundadora e CEO da Vittude, plataforma que conecta pacientes a psicólogos, conta que assistiu ao filme recentemente e passou a se questionar como as pessoas lidam com as doenças mentais.
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Em seu caderno de anotações, Coringa tem a seguinte frase escrita: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”, que lhe traz questionamentos.
A empreendedora aponta que quem já sofreu com algum transtorno mental e viu o filme, se identificou com a mensagem. “Em mim, ela bateu forte. Foi como se aquela cena tivesse me levado de volta ao passado. Não consegui evitar as lembranças da depressão que experimentei em 2012 e, ao revisitar minhas memórias, pude sentir a angústia real daquele personagem", diz.
Você viu?
Ao ver de fora, muitos podem não entender as razões do sofrimento de quem possui alguma doença mental. No caso de Tatiana, o que ninguém sabia é que ela havia passado por um relacionamento abusivo e, certo dia, durante 16 horas, foi mantida em cárcere privado pelo homem, com diversas ameaças de morte, que a deixaram com turbilhão de emoções negativas.
Traumas escancarados
Na ficção, O personagem passou a sofrer com distúrbios depois de ter vivido por inúmeros traumas ao longo da vida. “Uma infância turbulenta, marcada por maus tratos, violência e abuso. Uma vida adulta permeada pelo bullying, pela falta de respeito com o ser humano, com o diferente. Agressão atrás de agressão”, lista Tatiana.
Uma das cenas que mais chamam atenção no filme é a do metrô. “Ele está triste, sofrendo. De repente, vira alvo de chacota e agressões físicas por três jovens que estavam no mesmo vagão. Portando uma arma, que havia recebido de um colega de trabalho, Coringa atinge um ápice de contenção dos seus sentimentos e explode, atirando nos rapazes”, escreve.
“Naquela cena, pelo menos para mim, pareceu ficar evidente um ‘descolamento’ do mundo real. Um cidadão, que até então estava à margem da sociedade, era quase invisível. Mas, naquele instante de fúria, um novo personagem ganha vida: o assassino. A partir desse momento, as pessoas passam a conhecê-lo”, continua.
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Para a psicóloga e psicoterapueta Heloisa Bernardes de Oliveira Caiuby, da Vittude, o Coringa provoca impacto porque representa a materialização explícita da doença que a sociedade sofre como um todo. “Escancara as mazelas dos preconceitos, da falta de compaixão, do desprezo pelo outro, do sofrimento e da solidão daquele que não consegue corresponder a um padrão ideal”, analisa.
Da doença na ficção para as doenças na vida real
Outro ponto que o filme levanta no público é como lidar com pessoas com doenças mentais. O personagem sofre de todos os lados e acaba sendo um criminoso, mas a realidade pode ser diferente. Patrícia destaca que pessoas com doenças mentais não necessariamente saem por aí matando. “O que acontece no filme é uma combinação de circunstâncias sociais que conceberam um assassino", explica.
O que há, de fato, é preconceito. De acordo com a psicanalista, quem tem algum distúrbio costuma ser visto como incapaz. “No entanto, existem níveis de comprometimento variados das doenças. Quando a pessoa recebe a medicação adequada, afeto familiar e participa de atividades em que possa desenvolver seu potencial, a doença pode ficar sob controle”, pontua.
Patrícia destaca que é importante tomar cuidado para não estigmatizar esse público, que pode ter uma vida normal. “Uma pessoa com doença mental pode trabalhar, pode estudar e pode ter uma vida social. Elas não devem ser isoladas, precisam se relacionar com outras pessoas”, orienta.