Não bastassem os desafios científicos (da descoberta) e os industriais (de produção), a vacinação em massa contra a Covid-19 terá de superar mais um obstáculo: a distribuição.
Governos e empresas pelo mundo começam a pensar em estratégias para evitar um gargalo logístico, enquanto entidades brasileiras já se mobilizam para conseguir levar o imunizante a todos os cantos do território nacional. O governo federal, por sua vez, diz acreditar que a discussão ainda é “prematura”.
"A questão dos insumos é preocupante, mas, como utilizaremos os formatos que normalmente usamos para as nossas vacinas, acreditamos que o risco seja menor neste momento. De qualquer forma, estamos trabalhando junto aos fornecedores de insumos para evitar rupturas no abastecimento", afirma Mauricio Zuma, diretor de Bio-Manguinhos/Fiocruz.
O Ministério da Saúde
informou, por meio de sua assessoria, que o Brasil tem tradição em distribuir 19 tipos de vacinas diferentes pelo SUS
, e que esse conhecimento será utilizado no caso do imunizante que deverá existir contra a Covid-19
.
A pasta disse, porém, que ainda é prematuro, sem conhecer detalhes das vacinas, debater a logística ou os critérios de imunização.
O país tem, hoje, 2.484.649 casos confirmados e 88.634 mortos por Covid-19, segundo levantamento do consórcio de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S.Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo .
Nancy Bellei, infectologista, virologista e pesquisadora da Unifesp, afirma que o país vai se beneficiar de ter um dos melhores programas de vacinação em massa no mundo. Ela diz que, apenas no caso da gripe, são distribuídas pelo país 60 milhões de doses por ano.
"Planejar um programa de vacinação, distribuir vacina injetável, intramuscular, a gente já faz. É claro que temos dificuldade. Imagino que os países irão vacinar ao longo do tempo, todo mundo vai precisar de seringa, agulha, de profissionais e de cadeia de frio para conservação, mas o Brasil já tem tradição de vacinar".
Fazer com que a vacina chegue o mais rápido possível ao maior número de pessoas não é tarefa trivial. No caso do Brasil, com dimensão continental, o desafio leva em consideração comunidades que vivem em lugares distantes de grandes centros, muitas vezes com acesso apenas de barco.
‘Democratizar o acesso’
Desponta como complicador a possibilidade de a vacina precisar de duas doses. E há variáveis como quantas empresas vão produzir, em qual escala e em quais plantas. Também haverá o debate se deverão ser transportadas a baixíssimas temperaturas, como 25º C negativos.
"Estudos apontam que em algumas regiões do mundo até 50% das vacinas se perdem por falta de armazenamento ou dificuldades de transporte", afirma Maurício Lima, do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos).
Lima diz que o importante é ter um bom planejamento: "O Brasil tem uma rede eficiente de vacinação, com 37 mil pontos de imunização em 5,5 mil municípios".
Para especialistas, o maior risco é repetir o que ocorreu com a questão dos respiradores e dos equipamentos de proteção individual: o mundo todo ficar dependente de um ou de poucos fornecedores.
Analistas lembram que seriam necessários oito mil aviões de carga para carregar vacinas necessárias para metade da população mundial.
"Ninguém será vacinado na primeira semana após a aprovação. A produção, na melhor das hipóteses, será na casa dos milhões, com uma demanda de bilhões. A distribuição terá de ser segmentada e com muita disciplina", afirma o professor de logística Paulo Resende, da Fundação Dom Cabral. "O desafio da distribuição dessa vacina só é comparável ao abastecimento das grandes guerras mundiais".
Relatório publicado na terça pelo Eurasia Group alerta que a melhor maneira de resolver gargalos é firmar parcerias. “Alemanha, França, Holanda e Itália formaram uma aliança para colaborar na fabricação e distribuição de uma vacina”, informa a empresa de consultoria e pesquisa de risco político.
Em um evento nos EUA, especialistas demonstraram preocupação: "Não estamos preparados", afirmou Neel Jones Shah, responsável global de relações com companhias aéreas da transportadora Flexport, de São Francisco, em webinar na semana passada, noticiado pela Bloomberg. "As cadeias de suprimentos de vacinas são exponencialmente mais complexas do que a cadeia de suprimentos de EPIs".
Felipe Carvalho, coordenador da Campanha de Acesso a Medicamentos da ONG Médicos sem Fronteiras no Brasil, diz que a logística se soma a uma questão geopolítica, em que países mais ricos estão comprando os primeiros lotes, mesmo que eles talvez não estejam no pico da doença, e que é preciso democratizar o acesso aos imunizantes:
"Fala-se muito da distribuição justa, primeiro para profissionais de saúde e depois para populações mais vulneráveis. Mas é preciso levar em conta grupos com menos acesso à saúde, como comunidades e refugiados, como prioritários", diz. "Há um desafio político sobre produção, preço, como os países estão agindo sobre essas vacinas... É uma corda bamba entre a cooperação internacional e o cada um por si".