Próximo de completar 10 milhões de casos de Covid-19, o Brasil ainda vive, em fevereiro, reflexos epidemiológicos das aglomerações nas festas de Natal. Na avaliação de especialistas, o intervalo entre o contágio pelo coronavírus e o óbito pela doença, estimado em cerca de um mês e meio, ajuda a explicar parte do quadro da pandemia no país às vésperas do carnaval.
Epidemiologistas temem que o período, a despeito do cancelamento de festividades em várias partes do país e acompanhado de um ritmo lento de vacinação, provoque um novo repique nos moldes das festas de fim de ano e agrave um cenário que já é crítico.
Na última quinta-feira, 1.452 óbitos foram notificados no Brasil, o pior índice de 2021 e o terceiro maior desde o início da pandemia. Com a média móvel de mortes acima de mil desde 21 de janeiro, as estatísticas das secretarias estaduais de saúde apontam para um padrão sólido acima de 1.200 mortes diárias no país.
Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, se a “fatura” do Natal ainda não foi paga, eventuais descuidos durante a próxima semana terão efeitos prolongados na epidemia.
Para a sanitarista Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o momento inspira cuidado.
"Temos hoje um repique relacionado aos eventos de fim de ano e suas aglomerações e podemos esperar que acontecerá de novo em função do carnaval. Não digo em relação às festas, mas ao feriado. Hotéis ocupados, pessoas viajando, um deslocamento grande", afirma Bahia, lembrando que o relaxamento provocou repiques em outras ocasiões.
Mesmo em dezembro, o mês mais movimentado no Brasil desde o início da pandemia, não foi a data do Natal em si, mas as atividades do período de compras que tirou as pessoas de casa. No dia 25, a mobilidade começou a cair e, no dia 31, mais pessoas ficaram em casa, indicam dados de celulares rastreados anonimamente pelo Google.
Para especialistas, na maioria dos estados do país, contágios em dezembro têm relação direta com altos índices de mortes por Covid-19, como os que estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e outros registram agora. O Rio sofreu essa alta antecipadamente, por ter tido grande circulação ainda em outubro, e vê agora o número de mortes cair um pouco.
"Na curva de óbitos e casos, o Brasil se manteve em alta o tempo todo, sem diferenças abruptas durante a pandemia, quase como se fosse um fenômeno natural. O vírus está à vontade o tempo inteiro, mesmo naquele momento em que houve uma redução", diz Bahia.
Nessa conjuntura haveria ainda mais dificuldades com o sistema de saúde em meio a obstáculos na testagem e vacinação:
"Nosso sistema não comportaria e nunca comportou a pandemia, com uma quantidade pequena de leitos. E a gente vem navegando nessa tempestade sem testes suficientes. Não temos um plano de vacinas".
Para o epidemiologista da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Lotufo, embora a movimentação nas cidades deva ser bem menor do que no do ano passado, o carnaval de 2021 poderá se somar a outros fatores que agravam a pandemia, que se estabilizou num patamar alto e preocupante.
"Estamos pagando a conta do Natal, do réveillon e das férias. O raciocínio é que, após o contágio, demora 15 a 20 dias para (o aumento de) casos graves e quase um mês para (aumentar) a mortalidade. No próximo momento, o carnaval vai entrar, reforçar e jogar (os reflexos nas estatísticas) para março", diz Lotufo.
Ocupação de UTIs
Às vésperas do carnaval, oito estados estão com a ocupação dos leitos de UTI para Covid-19 na rede pública igual ou acima de 80%, segundo levantamento realizado pelo GLOBO.
Somando os leitos públicos de enfermaria e UTI, ao menos 26,5 mil pessoas estão internadas com Covid-19 no país, e as mortes pela doença continuam em alta no Brasil. Ontem, o país registrou a maior média móvel de mortes pela Covid-19 desde julho, com 1.068 óbitos, segundo boletim do consórcio de veículos de imprensa.
A situação é preocupante, ainda que alguns municípios, como o Rio, estejam registrando queda no número de casos diagnosticados de Covid-19, um dado muito sujeito a falhas de notificação.
Embora o monitoramento de leitos de UTI seja importante para identificar eventuais deficiências na assistência médica intensiva e acompanhar o número de pacientes da Covid-19 hospitalizados, Lotufo alerta que oscilações positivas ou negativas na taxa de ocupação não significam, necessariamente, um reflexo epidemiológico da doença.
O índice pode cair mesmo quando há número maior de internações, caso a oferta de leitos seja ampliada ou muitos pacientes morram num período curto e deixem leitos vagos.
Para o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alberto Chebabo, com os grandes desfiles cancelados, as autoridades precisam estar atentas para outros tipos de aglomeração no carnaval.
"O que preocupa mais não são tanto as festas e os blocos. Como é um feriado grande, mesmo com prefeitos cancelando eventos, as pessoas viajam e fazem aglomerações em cidades menores. Aqui no RJ, em Búzios, Cabo Frio e região serrana as cidades não têm uma estrutura para receber muita gente sem aglomeração", afirma o médico.
Hotéis movimentados
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, a taxa de ocupação hoteleira no Recife é estimada em 60% no carnaval. Rio e Florianópolis têm 50% de ocupação prevista, e Fortaleza, 40% das unidades ocupadas.
Apesar de contrastarem com os índices do ano passado, quando o coronavírus ainda não havia chegado oficialmente ao Brasil, os números indicam uma mobilidade expressiva de turistas em um momento sanitário considerado preocupante, a despeito do cancelamento de festas e blocos.
Chebabo diz crer que as autoridades estão procurando conter a aglomeração de carnaval, mas diz que, se o isolamento social relaxar muito, como em dezembro passado, o país deve passar por mais uma fase de recrudescimento da pandemia.
"Quando você tem aglomeração, semanas depois vem o impacto no número de casos e depois no número de mortos", afirma.