Se os casos de Covid-19 voltaram a aumentar em diversos países que tinham a doença sob controle, a situação em boa parte da América do Sul hoje vai na direção contrária. Após meses como um dos epicentros globais do vírus, a região viu os novos diagnósticos diminuírem 59% desde junho, apesar de olhar com apreensão para a variante Delta e seu risco de contágio acentuado.
As taxas regionais são impulsionadas pela melhora no cenário brasileiro, mas as situações de Argentina, Colômbia e Paraguai chamam atenção. O trio vê uma queda sustentada do contágio há semanas que, para especialistas ouvidos pelo GLOBO, se deve a uma multiplicidade de fatores — entre eles, a vacinação.
Se o Chile e o Uruguai já vacinaram mais de 70% de suas populações, Buenos Aires, Bogotá e Assunção estão mais distantes da imunidade de rebanho. Ainda assim, a campanha já começa a surtir efeito, principalmente nas faixas etárias mais vulneráveis.
Na Argentina do presidente Alberto Fernández, as novas infecções caem há 10 semanas consecutivas — apenas na última quinzena, diminuíram 23%. As mortes, por sua vez, caem há oito semanas. Na sexta, horas depois de o país superar a marca de 5 milhões de casos diagnosticados, a Casa Rosada anunciou seus planos para uma flexibilização que entrou em vigor no sábado.
Teatros, cinemas e centros culturais passaram a funcionar com ocupação de 70% e os argentinos podem receber até outros 20 indivíduos em suas casas (ou 10, em ambientes fechados). Em espaços públicos, pode haver reuniões de até 100 pessoas. As aulas presenciais poderão ocorrer desde que os parâmetros de controle regionais permaneçam estáveis.
O governo também aliviou as restrições para ingressar em solo nacional: ao invés de autorizar apenas a entrada de mil argentinos ou residentes por dia, aceitará 1,7 mil. Neste momento, as fronteiras terrestres continuarão fechadas e a entrada de turistas, vetada, mas já se projeta aliviá-las no futuro.
À agência Reuters, o especialista em doenças infecciosas Jorge Geffner disse que algumas das medidas são “irracionais” e podem passar uma impressão falsa de que a pandemia está perto do fim, quando isto não é necessariamente real. Fernández, contudo, mostrou-se confiante de que o ritmo da vacinação será suficiente para implementar o plano.
Problemas com vacinação
Até o momento, 57,1% dos argentinos receberam ao menos uma injeção, mas apenas 17,5% tomaram a segunda. A discrepância, uma das maiores da região, deve-se a problemas com a entrega das segundas doses das vacinas Sputnik V.
Diferentemente dos outros inoculantes, as fórmulas da primeira e da segunda doses da Sputnik são diferentes. O governo russo, no entanto, vem tendo problemas para entregar as injeções derradeiras: apenas 20% das vacinas recebidas por Buenos Aires correspondem a segundas doses.
Pressionado por ameaças argentinas de romper o acordo de fornecimento, a Rússia prometeu resolver o problema. Já enviou, por exemplo, 500 litros do princípio ativo para que Buenos Aires possa acelerar a produção das segundas injeções em seu território.
O governo também autorizou a substituição da segunda dose da Sputnik por injeções da Moderna e da AstraZeneca. Para Hugo Pizzi, da Universidade Nacional de Córdoba, a expectativa é que todos estes fatores ajudem a diminuir a diferença.
Segundo o epidemiologista, apesar dos obstáculos, as primeiras doses já podem ter tido um impacto na queda de casos: em 2 de junho, quando o país atravessava um de seus piores momentos na pandemia, registravam-se mais de 32,8 mil infecções por dia. Pouco mais de dois meses depois, são quase 12 mil casos diários.
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Alta eficácia
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Virologia da Argentina e pela Universidade Nacional de Córdoba constatou que 85,5% das pessoas inoculadas com a Sputnik desenvolveram anticorpos 14 dias após a vacina. A maior parte das mortes e internações no país hoje, diz ele, ocorre em pessoas não inoculadas ou que já estavam internadas há muito tempo. O professor crê que a situação atual permite flexibilizações, mas com limites:
"A indisciplina está presente. Para sair desta tragédia, precisamos de vacina e disciplina. Hoje temos vacina, mas a disciplina está faltando", afirmou, apontando que 35% dos argentinos nunca aderiram às restrições sanitárias.
Já na Colômbia, onde os novos casos caíram 50% nos últimos 14 dias, a vacinação está ainda mais atrás. Até o momento, apenas 37% dos colombianos receberam ao menos uma dose. Quase um quarto deles recebeu as duas.
Para Lyda Osorio, epidemiologista da Universidade del Valle, a vacinação tem um impacto na contenção da doença, mas não explica sozinha a queda. É natural do ciclo de doenças infecciosas, ela diz, que haja oscilação dos casos.
"É muito difícil atribuir a queda de casos a uma causa única. O provável é que seja um conjunto de tudo", afirmou, apontando para aspectos como o uso adequado de máscaras e o respeito às medidas sanitárias.
O governo colombiano, diz ela, recorre a um leque diverso de doses para vacinar sua população, mas ainda assim enfrenta escassez de inoculantes diante da alta demanda mundial. Outro fator que dificulta a vacinação no país, ela afirma, é a pouca infraestrutura para acelerar a campanha em áreas mais remotas.
O risco da variante Delta
Na prática, diz Osorio, a vida no país é hoje bastante similar à pré-pandemia. Algumas restrições permanecem para grandes aglomerações e lugares como boates, que começam a reabrir gradualmente. As aulas presenciais também foram retomadas.
O Paraguai, em paralelo, vacinou uma parcela ainda menor de sua população: 25,76% receberam ao menos uma dose e menos de 5% receberam as duas. O atraso, em parte, deve-se também aos problemas para receber as segundas injeções da Sputnik.
Ainda assim, na semana passada, a região de Assunção deixou de ser considerada uma área de alto risco de transmissão pela primeira vez em um ano. O governo, contudo, reforça que o uso de máscaras continua a ser imperativo e que não se deve relaxar.
Em todos os três exemplos, as mortes demoraram mais para cair que os casos. Isso, apontam os especialistas, é consequência dos ciclos da doença, cujo período de incubação pode chegar a 14 dias. Além disso, não é raro que pacientes graves fiquem internados por semanas ou meses.
Apesar das melhoras, os três países continuam a figurar na lista dos 20 que registram mais mortes por 1 milhão de habitantes, segundo o Our World in Data, um projeto da Universidade de Oxford. E o temor é que a variante Delta chegue antes que a situação se estabilize por completo.
Na Colômbia, disse Osorio, as fronteiras extensas dificulta um controle eficaz das mutações que entram no país, e a tendência é que mais casos sejam registrados nas próximas semanas. Pizzi também crê que seja uma questão de dias até que se constate transmissão local na Argentina. O impacto da Delta, eles concordam, dependerá da velocidade com que as vacinas, e em particular as segundas doses, cheguem aos braços das pessoas .