Falhas, inconsistências e até suspeitas de clonagem de dados rondam o ConecteSUS, ferramenta do governo federal que funciona como uma carteira digital de vacinação. O sistema entrou no ar neste ano e deveria servir para atestar que vacina cada brasileiro tomou e quantas doses. Mas já existem relatos de dados divergentes e até inexistentes sobre as vacinas contra a Covid-19.
Moradora de Brasília, a operadora de caixa Pamella Marra, de 34 anos, tentou se vacinar na última semana quando o governo local incluiu sua faixa etária no cronograma. Ao chegar sua vez, conta que a profissional de saúde lhe informou que ela já havia recebido o imunizante. Segundo registros do ConecteSUS, duas doses de CoronaVac foram tomadas em março e abril na cidade de Mairinque, região metropolitana de Sorocaba.
Marra acredita ter sido vítima de fraude, já que nunca foi ao local e estava em Brasília nas duas datas:
"Como eles liberaram a vacina para essa pessoa, que usou meu CPF, que estava sem documento nenhum, porque meu documento estava comigo, e conseguiu tomar as duas doses?".
Coordenador na Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt elenca como possíveis causas erro de digitação do CPF e vazamento de dados pessoais, a exemplo do que ocorreu em janeiro, mas não descarta a possibilidade de fraude.
"Qualquer sistema que tenha característica de interoperabilidade, que é, justamente, ter que pegar do postinho de saúde, passar para o sistema do município, para o do estado e o do governo", explica o analista de dados, que completa: "Nunca é o mesmo idioma (entre os sistemas), tem que fazer uma tradução entre eles".
A operadora de caixa registrou boletim de ocorrência do caso, que ainda não está esclarecido, por estelionato e falsidade ideológica.
"Não pude tomar porque outra pessoa já tomou (no meu lugar), sem contar todo o constrangimento que eu tive na hora em que a menina falou que eu já tinha tomado, como se eu quisesse tomar a terceira dose", lamentou Marra.
O GLOBO entrou em contato com a Secretaria estadual de Saúde de São Paulo e recebeu resposta da Prodesp, empresa de tecnologia do governo do estado. “Não há pré-cadastro ou registro de doses aplicadas na Plataforma VaciVida para o nome mencionado”, informou, em nota.
O fotógrafo Mágnus Wílian Batalha, 28, orientava os amigos a se vacinarem quando abriu o ConecteSUS e percebeu que os dados não batiam com o comprovante físico e com os vídeos que gravou do momento da aplicação:
Você viu?
"Quando eu fui ver no aplicativo, estava lá que eu tomei CoronaVac e até o lote da vacina não condizia com o cartão de vacinação. Eu fiquei assustado, (pensando): “Será que tomei a vacina errada?”. Só que o lado bom de ter gravado tudo é que você pode pegar o vídeo que você fez e começar a verificar as informações. No vídeo que eu fiz, estava escrito, na ampola da vacina, recombinante e ela tinha uma faixa azul (padrão da Fiocruz). Foi assim que eu confirmei que eu tinha mesmo tomado AstraZeneca", afirmou.
Morador de Porto Velho, em Rondônia, o jovem voltou à unidade de saúde onde recebeu o imunizante e conta que recebeu informações desencontradas. Enquanto uma profissional disse que não haveria problemas, outra disse que informasse essa questão na data em que fosse completar o esquema vacinal, pois não saberia orientar.
"Meu problema maior é o seguinte: vai que eu preciso viajar no futuro? Tem a possibilidade de haver a terceira dose para a CoronaVac também", continuou Batalha.
Para o especialista, os dados mais importantes de serem registrados são o número de pessoas que tomaram a primeira dose e as que completaram o esquema vacinal. Schrarstzhaupt pondera que as falhas prejudicam o controle da vacinação, mas representam uma pequena porcentagem do total de imunizados:
"Falhas acabam atrapalhando, mas não são exclusivas desse sistema. Mas aparecem mais porque todo o Brasil tem que se vacinar".
Já o gerente comercial Augusto Miranda, 42, recebeu a primeira dose de AstraZeneca no fim de maio, mas até hoje não consta no sistema do governo federal.
"Nunca apareceu minha vacina lá, é como se eu nunca tivesse tomado", disse o morador da cidade de São Paulo.
Histórico de saúde
Miranda conta que voltou ao posto onde recebeu a vacina para verificar a questão com os profissionais de saúde, que lhe informaram que lançaram os dados no sistema. Miranda buscou, então, o suporte do ConecteSUS, o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) e a ouvidoria do SUS por e-mail, mas não obteve resposta. Questionada pelo GLOBO, a Prodesp informou que o caso “ficou represado devido a uma falha de registro pela unidade de saúde” e que já pediu correção.
Segundo o Ministério da Saúde, estados e municípios devem enviar os dados da vacinação na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), que deve disponibilizá-los à população no ConecteSUS em até 72 horas.
“Caso haja alguma divergência nas informações, o usuário pode acessar o suporte no próprio app, no menu ‘Fale com o ConecteSUS’. Para o cidadão que não tiver o registro disponível no aplicativo em até dez dias, após a data da sua vacinação, o ministério orienta procurar o local de vacinação ou a Secretaria municipal de Saúde de sua região, para solicitar o registro e o envio dos seus dados à RNDS”, orientou a pasta, por nota.
Com dados alimentados por estados e municípios, o sistema foi idealizado para reunir o histórico de pacientes da rede pública, incluindo vacinas tomadas e também exames realizados