Cinturão da ferrugem, do algodão, do milho, da Bíblia. Agora, os Estados Unidos veem o surgimento de uma região que se destaca não pela decadência da indústria, pela agricultura ou pela forte influência do conservadorismo cristão, mas pelo solo fértil para a Covid-19. Se a variante Delta causa um novo surto em todo o país, seu epicentro incontestável está no Sul americano.
A região, na segunda, registrava 73 novos casos de infecção pelo novo coronavírus por 100 mil habitantes — quase o dobro do Oeste americano, vice-líder no novo surto, onde há 37 diagnósticos por 100 mil pessoas. Não é à toa que a área engloba alguns dos estados com as menores taxas de vacinação do país e vê falta de leitos para atender aos doentes.
Nos EUA como um todo, 52% dos americanos completaram seu ciclo vacinal. As unidades federativas lanterninhas são as sulistas Mississippi e Alabama, onde apenas 37% da população tomaram as duas doses ou a injeção única da Janssen. Ambos estão também entre os cinco estados com mais novos casos, internações e mortes por 100 mil habitantes na última semana.
Enquanto um número crescente de governadores e autoridades locais democratas anuncia a obrigatoriedade de máscaras em espaços fechados e das vacinas, os republicanos sulistas continuam a resistir. Ao menos cinco estados, entre eles três no Sul, proibiram que repartições públicas obriguem seus funcionários a se vacinarem, por exemplo.
Na Flórida, estado onde há mais internações por 100 mil pessoas, o governador Ron DeSantis emitiu até mesmo uma ordem proibindo empresas privadas de exigirem a imunização de seus funcionários ou clientes. Ele também vetou que escolas obriguem seus alunos a usarem máscaras, algo desafiado por alguns distritos escolares do estado.
Regra similar foi imposta pelo governador do Texas, Greg Abbott, que contraiu Covid-19 na semana passada, apresentando sintomas um dia após participar de um evento de campanha sem qualquer respeito às diretrizes sanitárias. O veto foi questionado na Justiça pelos distritos escolares de cidades como Houston, Dallas e Austin, que viram a Suprema Corte estadual emitir uma decisão a seu favor.
Golfo da Covid
A situação é particularmente crítica na orla do Golfo do México, popular destino turístico regional nos meses de verão. As praias estão lotadas e, em vários cassinos, a falta de restrições sanitárias faz com que seja quase possível esquecer que há uma pandemia.
Os baixos índices de inoculação e uso de máscaras, como era de se esperar, são inversamente proporcionais à taxa de ocupação hospitalar. Flórida, Alabama e Mississippi já estão entre os cinco estados com mais internações por 100 mil habitantes, mas suas cidades costeiras de Panama City Beach, Mobile e Gulfport têm taxas ainda maiores que as médias estaduais. Até o momento, nenhum de seus condados vacinou mais de 40% da população local.
"Nós temos pacientes de 44, 45, 35 anos que morreram", disse ao New York Times Tiffany Murdock, administradora de três hospitais na costa do Mississippi. "Eu sou enfermeira há 15 anos e nunca vi nada assim".
Você viu?
Se a discrepância na taxa de vacinação entre os estados é grande, a situação interna de muitas das unidades federativas é similar: enquanto alguns condados têm altas taxas de vacinação, seus vizinhos ficam para trás. Logo, o vírus continua a circular livremente.
Na semana passada, os Estados Unidos voltaram a registrar uma média de mil mortes por dia pela primeira vez desde março. Há também cerca de 150 mil novas infecções diárias, patamar similar ao do fim de janeiro. A nova onda, repete o presidente Joe Biden em vários de seus discursos, é uma “pandemia dos não vacinados”.
As vacinas cumprem com grande eficácia seu papel de evitar casos graves e internações e, diante das evidências de que a proteção perde força com a passagem do tempo, os EUA já anunciaram que aplicarão doses de reforço a partir de setembro. A contenção do contágio, contudo, só ocorrerá quando cerca de 75% da população já estiver inoculada, algo ainda distante no cenário americano.
Pandemia dos não vacinados
O ritmo da procura pelas doses aumentou no último mês, à medida que a Delta se disseminava. Hoje, o país aplica cerca de 860 mil doses por dia — uma queda de 75% em relação ao pico de 3,38 milhões de doses diárias injetadas em abril. Está, ainda assim, muito aquém do necessário para fazer frente à Delta.
Há vários fatores que explicam a resistência de muitos americanos a se vacinarem, segundo especialistas: motivos religiosos, por exemplo, e políticos. Dos dez estados com menor percentual de pessoas já totalmente inoculadas, apenas um não votou em Donald Trump no ano passado. A proporção é a mesma para os dez estados que atualmente têm mais casos por 100 mil habitantes. A exceção em ambos os casos é a Geórgia.
Outro fator essencial são questionamentos equivocados sobre a segurança da vacina, impulsionados por informações falsas. Uma pesquisa de junho feita pela Kaiser Family Foundation constatou que três em cada dez americanos ainda não vacinados se sentiriam mais dispostos a receber as injeções assim que tivessem aprovação definitiva.
Com o selo verde para a vacina da Pfizer, concedido pela Agência de Alimentos e Medicamentos na segunda, e a expectativa de que o mesmo ocorra com as doses da Moderna e da Janssen nas próximas semanas (ambas até o momento têm apenas a autorização emergencial), o governo espera que mais pessoas se vacinem.
"Se nós conseguirmos atravessar o inverno e convencer a maioria, a grande maioria das 90 milhões de pessoas ainda não vacinadas a se inocularem, eu espero que possamos começar a ter algum controle [sobre a crise sanitária] na primavera de 2022", disse o epidemiologista-chefe da Casa Branca, Anthony Fauci, na segunda, em entrevista à CNN.
O prazo é um grande passo atrás para um governo que, há alguns meses, quando os casos estavam em queda livre, esperava que a pandemia estivesse sob controle já neste verão. Os planos, no entanto, foram interrompidos pela Delta e pela baixa vacinação.
Tanto Biden quando Fauci instam governos estaduais e organizações privadas a criarem mandados de vacinação obrigatória para seus funcionários, como o governo federal vem fazendo. Consideram que isto será essencial para avançar a vacinação e finalmente deixar a pandemia para trás. A resistência, contudo, é significativa, especialmente nos estados do Sul.