A esclerose múltipla — uma doença autoimune que afeta o cérebro e a medula espinhal — pode surgir após a infecção pelo vírus Epstein-Barr (VEB). É o que indica um estudo feito por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard e publicado na revista científica Science, uma das mais prestigiadas. Estima-se que 90% a 95% dos adultos já tenham sido infectados pelo chamado herpesvírus humano 4, responsável por provocar a "doença do beijo", a mononucleose. Em crianças, o vírus costuma mostrar sintomas leves ou, muitas vezes, assintomática.
Ao vasculhar dados de cerca de 10 milhões de militares dos EUA, coletados ao longo de duas décadas, a equipe de pesquisa descobriu que o risco de desenvolver esclerose múltipla aumenta 32 vezes após uma infecção por VEB. Eles não encontraram tal ligação entre a doença autoimune e outras infecções virais, e nenhum outro fator de risco mostra um aumento tão alto no risco.
O grupo de que fez a descoberta trabalha há 20 anos com a hipótese de que o VEB pode ser um fator de risco causal para a esclerose múltipla. Para testar essa hipótese, a equipe se propôs a identificar indivíduos que nunca foram expostos ao vírus, rastrear seu status de VEBV ao longo do tempo e ver se a chance de desenvolver esclerose múltipla aumentou após a exposição.
No entanto, testar esta hipótese era um grande desafio, já que grande parte da população já se infectou com VEB na idade adulta. Para identificar pessoas sem exposição prévia ao vírus, a equipe vasculhou um conjunto de dados exclusivo com curadoria do Departamento de Defesa dos EUA.
O Departamento de Defesa mantém um repositório amostras de soro, a porção amarelada e fluida do sangue, coletadas de militares. No início de seu serviço, e aproximadamente a cada dois anos depois, militares da ativa fornecem soro para triagem de HIV, e o que sobre das amostras dos testes é colocado no repositório.
O soro contém anticorpos e, portanto, essas amostras armazenadas forneceram aos pesquisadores uma maneira de verificar o status de VEB (se a pessoa se infectou ou não) de cada pessoa ao longo do tempo, verificando a presença de anticorpos contra o vírus.
A equipe então usou esses dados para investigar a potencial ligação entre o status de VEB e o início da esclerose múltipla. O trabalho se concentrou apenas nos indivíduos que foram expostos aos 20 e poucos anos, e não durante a infância.
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Usando registros médicos, eles identificaram 801 indivíduos que desenvolveram esclerose múltipla durante o período do estudo e que forneceram pelo menos três amostras de soro antes do diagnóstico.
Os pesquisadores descobriram que 35 desses 801 indivíduos haviam testado negativo para anticorpos específicos do VEB em sua amostragem inicial de soro, mas com o tempo, todos, exceto uma pessoa, foram expostos ao vírus. Assim, 800 dos 801 pegaram VEB antes de desenvolver esclerose múltipla.
A equipe realizou vários testes para ver se algum outro vírus compartilhava uma correlação tão forte com a doença, mas descobriu que o VEB era o único a se destacar dessa maneira.
E a equipe detectou outra dica de que o VEB desencadeia a esclerose múltipla: no soro daqueles que desenvolveram a doença, a equipe detectou sinais de danos nos nervos que apareceram após a exposição ao vítus, mas antes do diagnóstico oficial de esclerose múltipla.
Na esclerose múltipla, o sistema imunológico ataca erroneamente a mielina, uma bainha isolante que envolve muitas fibras nervosas, e esse dano prejudica a capacidade das células nervosas de transmitir sinais. Os primeiros sinais desse dano às células nervosas podem aparecer até seis anos antes do início da esclerose múltipla, de acordo com um relatório publicado na revista científica Jama, em 2019. Então a equipe procurou indícios desse dano nas amostras de soro.
Especificamente, eles procuraram uma proteína chamada cadeia leve de neurofilamento, cujas concentrações aumentam no sangue após danos às células nervosas. Essa proteína aumentou no soro daqueles que desenvolveram esclerose múltipla, mas somente depois que foram expostos ao VEB.
Para aqueles no grupo de controle, que nunca desenvolveram esclerose múltipla, a concentração de cadeia leve de neurofilamento no sangue permaneceu a mesma antes e depois de pegar VEB; isso se alinha com a ideia de que a exposição ao vírus não desencadeia a esclerose múltipla em todos, mas apenas em pessoas suscetíveis.