O brasileiro perdeu quase dois anos de expectativa de vida em 2020 por causa da pandemia de covid-19. Em média, bebês nascidos no Brasil em 2020 viverão 1,94 ano a menos do que se esperaria sem o quadro sanitário atual no país. Ou seja, 74,8 anos em vez dos 76,7 anos de vida anteriormente projetados.
Com isso, a esperança de longevidade dos brasileiros retornou ao patamar de 2013. A queda interrompe um ciclo de crescimento da expectativa de vida no país, que partiu da média de 45,5 anos, em 1945, até atingir os estimados 76,7 anos, em 2020, um ganho médio de cinco meses por ano-calendário.
O cálculo do impacto da covid-19 na sobrevida da população foi feito por uma equipe de pesquisadores liderados pela demógrafa Márcia Castro, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard. A expectativa de vida, ou seja, a estimativa de quantos anos uma determinada população nascida em um dado ano deve viver, é um importante indicador de qualidade de vida e um dos componentes no cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das nações.
"Funciona como um termômetro social porque ela te mostra como a gente está progredindo em aumentar a longevidade da população, através de medidas de saúde pública, saneamento, e também te mostra como determinado choque, como uma guerra ou, neste momento, a pandemia, reduz esse indicador porque há um padrão de mortalidade maior do que o esperado", afirmou Márcia Castro à BBC News Brasil.
Com a segunda maior taxa de mortalidade do mundo em números absolutos, o Brasil registra mais de 355 mil óbitos causados pelo novo coronavírus. E o impacto dessa mortalidade na expectativa de vida da população do país já é 72% maior do que a verificada nos Estados Unidos, líder em óbitos por covid-19 (560 mil). Enquanto os brasileiros perderam 1,94, ano, na média, os americanos perderam 1,13 ano de expectativa de vida em 2020 por conta da pandemia (redução de 78,8 anos para 77,8 anos).
Mais de dois anos?
Mas os dados podem ser na verdade piores do que essa estimativa. "A gente sabe que houve muita dificuldade de acesso ao teste de covid-19, subnotificação e muita morte pelo novo coronavírus que não foi registrada dessa maneira", explica Castro.
Assim, os pesquisadores contemplaram um cenário alternativo: contabilizaram o impacto na expectativa de vida brasileira a partir da soma de todas as mortes oficialmente registradas como covid-19 acrescidas de 90% daquelas identificadas como causadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), quadro comumente provocado pelo novo coronavírus. Nesse cenário, a redução na expectativa de vida no Brasil ultrapassaria os dois anos e meio.
"Ainda assim, são duas estimativas bastante conservadoras. As medidas devem ser ainda maiores porque mesmo depois de contabilizar mortes por covid-19 e por SRAG, verificamos que há ainda um excesso de óbitos em relação ao esperado, que pode ser causado por falta de assistência médica básica para outras doenças, por exemplo", afirma Castro. A demógrafa e os demais pesquisadores já trabalham em novas pesquisas para estimar essa perda.
Em 2021 vai ser maior?
Além disso, o atual estado da pandemia no Brasil indica que, em 2021, em vez de se recuperar um pouco do tombo, a expectativa de vida no país pode sofrer uma redução ainda mais severa. Esse ano, o país já registra o equivalente a quase metade de todas as mortes por covid-19 de 2020. "Não estamos nem em meados de abril e Estados como Amazonas e Rondônia já têm mais mais mortes esse ano do que em todo o ano passado. Então é fácil prever que esse ano deve ser ainda pior", nota Castro.
A tendência, de acordo com a cientista, não é de melhora porque a vacinação avança a passos lentos no país - nem 12% da população recebeu ao menos uma dose de imunizante - e as medidas de saúde pública que poderiam conter a transmissão do vírus - como o uso de máscaras e o distanciamento social - não têm sido adotadas de forma consistente ao redor do Brasil. A atual média móvel de mortes diárias de brasileiros por covid-19 está acima de 3 mil.
Para piorar, de acordo com a Fiocruz, nas últimas semanas o país enfrenta o maior colapso hospitalar de sua história. Nessas circunstâncias, o número de mortes por causas tratáveis e evitáveis tende a aumentar, já que a população não consegue acesso regular a tratamento de saúde em um sistema sobrecarregado por vítimas da covid-19.
À situação, se somam a insegurança alimentar, estimada em dezenas de milhões de pessoas, já que a economia patina e o auxílio emergencial atual equivale a menos da metade do concedido em 2020. "Então você tem a pandemia, o restante do atendimento de saúde precário, um conjunto de famílias com sua vida e renda desestruturada porque perderam um ou os dois mantenedores da casa, há fome de novo no Brasil, e tudo isso afeta os índices de mortalidade não só entre idosos, mas a mortalidade infantil e a força produtiva brasileira também", afirma Castro.
Em um pior cenário, o Brasil poderia verificar uma redução da expectativa de vida comparável à registrada nos Estados Unidos durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918, quando se verificou uma perda entre 7 e 12 anos da longevidade estimada dos americanos. "O que percebemos é que o Brasil não está nem tomando as medidas necessárias para tentar sair da onda atual, já que a pandemia corre solta, nem se preparando para a possibilidade de uma nova onda da covid-19 ainda neste ano", diz Castro.
Pior no Norte, melhor no Nordeste
O estudo, ainda em versão pré-print (sem revisão pelos pares), indica também que a pandemia reduziu de modo desigual a expectativa de vida a depender da região do país.
Fenômeno parecido foi registrado nos Estados Unidos. Lá, estudos feitos com recorte de raça mostraram que, enquanto um homem americano branco teve uma redução de 0,8 ano na expectativa de vida em decorrência da pandemia, um negro registrou queda de 3 anos no indicador e um hispânico, de 2,4 anos.
No Brasil, o cálculo por raça não se mostrou viável porque um terço dos registros de óbito por covid-19 não continha essa informação. "Não tenho dúvidas que encontraríamos dados semelhantes aos americanos, com pretos e pardos mais vitimados também no Brasil, mas a estimativa ficaria frágil pela falta do dado completo", afirmou Castro.
A solução foi verificar as diferenças da mortalidade por Estado. A primeira constatação é que, diante da inexistência de uma estratégia centralizada do governo federal para combater a pandemia, as estratégias locais variaram e os resultados em relação à pandemia, também.
Os pesquisadores descobriram que o Distrito Federal, onde está a capital do país, registrou o pior resultado: ali, a expectativa de vida recuou em mais de 3 anos. A região ganhou destaque tanto pelo colapso do sistema de saúde que, recentemente levou a cenas de acúmulo de corpos de vítimas da covid-19 no chão de hospitais públicos, como pelas repetidas excursões do presidente Jair Bolsonaro às cidades satélites que compõem o DF. Nessas ocasiões, o mandatário, sem máscara, provocou aglomerações e repetiu o costumeiro discurso contra medidas de como o distanciamento social.
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O DF foi seguido por três Estados do Norte: Amapá, com queda de 2,98 anos na expectativa de vida, Amazonas, com perda de 2,92 anos, e Roraima, com redução de 2,74 anos.
Na outra ponta, entre os Estados que menos perderam na expectativa de vida em 2020, estão vários nordestinos, como Maranhão, Piauí e Bahia, os três abaixo de 1,49 ano de redução na expectativa de vida.
A descoberta intrigou os pesquisadores, já que, conforme assinalam no estudo, os "Estados das regiões Norte e Nordeste têm os piores indicadores de desigualdade de renda, pobreza, acesso à infraestrutura e disponibilidade de médicos e leitos hospitalares". Então, por que o Nordeste não foi tão devastado pela pandemia quanto o Norte do país?
Em um artigo publicado nesta quarta-feira, 14/4, na revista científica Science, eles abordam hipóteses para essa disparidade entre as duas regiões mais pobres do país.
Uma delas é a rapidez com que a pandemia se interiorizou nos Estados. Os pesquisadores usaram uma escala de 0 a 100, em que quanto mais próximo de 100 mais concentrados geograficamente os casos e mortes estão. Se a pandemia tivesse sido restringida com sucesso a poucos municípios, os índices deveriam se manter em valores acima de 50 por várias semanas. Se ela tivesse se espalhado sem controle pelo território, a tendência seria de uma queda rápida desses valores em poucas semanas.
O achado não poderia ser mais ilustrativo. Na primeira semana em que casos de covid-19 foram diagnosticados, Amazonas, Roraima e Amapá (justamente aqueles Estados com maior redução na expectativa de vida) já registravam índices de casos e morte abaixo dos 50 na metodologia dos pesquisadores, ou seja, uma transmissão altamente disseminada e veloz em todo o território.
"Isso sugere a circulação não detectada do vírus antes do primeiros registros oficiais (e, portanto, quando os diagnósticos começaram já havia uma grande fração da população infectada), ou introduções rápidas e múltiplas do vírus seguidas por rápida propagação espacial", escrevem os cientistas no estudo. Os cientistas concluíram que o novo coronavírus já circulava no Brasil ao menos um mês antes do primeiro caso oficialmente diagnosticado, no final de fevereiro de 2020.
O resultado do quadro visto em Amazonas, Roraima e Amapá é um número muito alto de casos em um amplo espaço geográfico e em um curto espaço de tempo. E essa é, segundo Castro, a receita para que a mortalidade avance não só pelos efeitos do vírus, mas pela falta de estrutura de saúde. "No Amazonas, por exemplo, só Manaus têm leitos de UTI. Se esses leitos se esgotam rapidamente, apenas com pacientes da capital, enquanto há doentes que precisam deles a muitas horas de distância dali, o que acontece é inevitável: esse paciente distante vai morrer", explica Castro.
Mas não é só isso. Os pesquisadores também notaram de que maneira a resposta dos Estados produzia melhores ou piores resultados com o passar das semanas. "O impacto na expectativa de vida está ligado obviamente a como a epidemia se espalhou, que é uma função direta da ausência de controle do vírus. E a ausência de controle do vírus está ligada à questão do alinhamento político dos governadores a Bolsonaro", afirma Castro.
Segundo ela, os pesquisadores encontraram uma correlação entre o apoio dos atuais governadores ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro, em 2018, com sua propensão a tomar medidas como lockdowns e imposição do uso de máscaras, que contrariavam as diretrizes dadas pelo governo federal. Na Região Norte, dos sete governadores eleitos, cinco apoiaram abertamente Bolsonaro: Gladson Cameli (PP), no Acre; Wilson Lima (PSC), Amazonas; Coronel Marcos Rocha (PSL), em Rondônia; Antonio Denarium (PSL), em Roraima; e Waldez Góes (PDT), no Amapá. Do outro lado, no Nordeste, dos nove governadores, nenhum declarou apoio a Bolsonaro no pleito.
"As medidas que foram tomadas contra a pandemia quando você compara as duas regiões são completamente diferentes. Na região Nordeste você verifica medidas que iam completamente contra o que o presidente queria que fosse feito", diz Castro. Bolsonaro chegou a entrar com ação contra os governadores no Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir lockdowns. Em março de 2021, quando o governador baiano Rui Costa decretou severas restrições à circulação da população e ao comércio, Bolsonaro prometeu ir à Justiça para derrubar a ordem estadual. Costa reagiu dizendo que o presidente era "aliado do vírus".
'Baby boom' à vista?
Para Castro, os próximos meses serão cruciais para definir o futuro demográfico do país. Segundo a demógrafa, após um choque de mortalidade como o experimentado pelo Brasil, é comum ver um "baby boom", uma onda de nascimentos que recupere as taxas populacionais do lugar.
A pesquisadora, no entanto, tem dúvidas se algo semelhante acontecerá no Brasil agora, dado o cenário sombrio que se projeta para os próximos meses e a dificuldade de ver um fim para a pandemia no país. "É provável que tenhamos muitos casais que tenham adiado os planos de filhos no ano passado. Mas isso não significa que eles verão condição de ter um filho agora", diz Castro.
Em 2020, cidades como o Rio de Janeiro já registraram mais mortes do que nascimentos. O déficit populacional carioca ficou em quase 5 mil pessoas. Essa era uma tendência projetada pelo IBGE para acontecer apenas em 2047.
Segundo Castro, é difícil prever como a pandemia alterará os aspectos demográficos do país. "A gente ainda faz cálculos com base no Censo de 2010. A gente não sabe, por exemplo, o tamanho do impacto que essas mortes podem ter sobre o sistema da previdência social. Ou na composição populacional das cidades. Ou na taxa de reposição da população em dadas áreas, com mais mortes do que nascimentos", diz Castro.
A pandemia atrasou a execução do Censo, realizado a cada 10 anos, e empurrou a pesquisa para 2021. Mas a redução no orçamento público reservado para a empreitada - de R$ 2 bilhões para R$ 71 milhões - agora ameaça inviabilizar a realização de um novo Censo, o que deixaria o Brasil no escuro sobre a configuração de sua própria população.