A expectativa de reabertura da economia com governos presumindo que pacientes considerados recuperados da Covid-19 estarão imunes a novas infecções é temerária, pelo menos com o que se conhece até agora da doença. As dúvidas que imunologistas ainda têm sobre a enfermidade põem em xeque esperanças de “imunidade de rebanho” (uma parcela de pessoas imunes em quantidade suficiente para barrar epidemias) e proposta de “passaporte de imunidade” (liberação de pessoas com teste de anticorpos positivo para contato com outras).
O governo federal do Brasil e de outros países têm divulgado suas estatísticas de pacientes recuperados como um dado positivo no enfrentamento da doença. Mas há dúvidas ainda sobre quanto as fileiras de pessoas previamente infectadas ajudarão a barrar a continuação da pandemia, sobretudo no longo prazo.
"Pelo comportamento que a gente conhece de outros coronavírus e outros vírus respiratórios é de se esperar que não iremos adquirir uma imunidade definitiva, como no caso de sarampo, rubéola ou caxumba. Mas quero crer que, se eu tiver coronavírus agora, não vou ter o mesmo coronavírus de novo daqui dois ou três meses", afirma Nancy Bellei, professora de infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Todo o conhecimento sobre o Sars-CoV-2 é muito recente, ela diz, e pode frustrar mesmo essa expectativa no futuro.
Um novo estudo levantou o sinal preocupante de que a imunidade pode não ser duradoura, sobretudo no caso de infectados assintomáticos. Cientistas de Guangdong, na China, acompanharam 36 pessoas que contraíram o vírus , e, após três meses, a contagem de anticorpos sofreu diminuição significativa.
Segundo João Viola, presidente do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia e pesquisador do Instituto Nacional do Câncer, descobertas como essa, no entanto, não justificam que se descarte a esperança de imunidade para quem já foi infectado , porque o sistema imune não é composto só de anticorpos.
"Além dos anticorpos , que fornecem a imunidade humoral, existe a imunidade celular, conferida em parte por células chamadas linfócitos. Já existem trabalhos mostrando que o papel da imunidade celular é muito importante na resposta ao coronavíru", explica o cientista.
Avaliar a qualidade da imunidade celular, porém, é um processo tecnicamente complicado e não pode ser feito de maneira fácil como a da humoral, que é revelada por um simples teste sorológico.
Sem relatos de reinfecção
Viola destaca como fato otimista a informação de que, até agora, após mais de 9 milhões de casos no mundo, não existir um relato comprovado de reinfecção na literatura científica. Para saber se esse tipo de imunidade será suficiente para proteger pessoas contra o Sars-CoV-2 até um ou dois anos após exposição ao patógeno, porém, só o tempo dirá.
"Com todas as incertezas que temos, o isolamento social ainda é a maior garantia para que a gente consiga ganhar tempo e chegar ao fim dessa pandemia com o mínimo sofrimento possível", afirma.
E se a duração da imunidade ao vírus, seja ela celular ou humoral, ainda é incerta, à medida que o tempo passa a ideia do “passaporte da imunidade” se torna mais questionável, porque os exames de anticorpos que seriam usados para isso não especificam quando a pessoa se expôs ao vírus, além de perderem a sensibilidade com o tempo.
Para Viola, particularmente, a ideia de “imunidade de rebanho” é um sonho ainda mais distante: "Todos os trabalhos mostram que, para se ter uma boa imunidade de rebanho, é preciso mais de 60% ou 70% da população imunizada. Neste momento, na melhor das hipóteses, a gente tem em torno de 3% ou 4% da população com sorologia positiva (exames de anticorpos provando exposição ao coronavírus)".
Para que a imunidade de rebanho seja atingida por infecções naturais, e não por vacina, mesmo com uma taxa de mortalidade relativamente baixa, de menos de 1%, o número de brasileiros mortos pela Covid-19 chegaria à casa dos milhões.
Recuperados de quê?
Um outro fator complicante em exibir estatísticas de pacientes recuperados como algo positivo é que não há uma compreensão exata do status dessas pessoas.
Países usam critérios diferentes para definir esses casos. No Brasil, o governo mescla números fornecidos pelos estados com estatísticas do Sivep Gripe, sistema que monitora casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) por exames clínicos de sintomas.
Questionada, a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde não esclareceu se todos os pacientes considerados recuperados (hoje 53% dos mais de 1,2 milhão de casos registrados no Brasil) foram testados para confirmar a infecção pelo Sars-CoV-2.
“Inicialmente, são identificados os pacientes que se encontram hospitalizados por SRAG, sem registro de óbito ou alta no sistema. De forma complementar, são considerados os casos leves com início dos sintomas há mais de 14 dias, que não estão hospitalizados e que evoluíram para óbito”, afirmou a SVS em e-mail. “A estimativa de recuperados inclui o número de pacientes hospitalizados com registro de alta no Sivep Gripe.”
O Brasil não é o único país com contabilidade controversa. O Reino Unido tem sofrido críticas de cientistas por nem sequer estar fornecendo esses dados. A China, que hospitalizou muitas pessoas com sintomas leves e carimbou como “recuperados” todos os que recebiam alta, reporta 93% dos casos como recuperados. Influencia o fato de esses países estarem num momento mais avançado da epidemia.
Para Nancy, da Unifesp, diante de tantas incertezas sobre os dados brasileiros, também é difícil afirmar se a taxa de recuperação do país é melhor ou pior que a média. Hoje, entre as 30 maiores epidemias do mundo, o Brasil apresenta a 16ª maior parcela de pacientes considerados recuperados, mas é difícil que esse número represente algo relevante.